domingo, 19 de fevereiro de 2017

97 - Em defesa da epistocracia

EM DEFESA DA EPISTOCRACIA

A ascensão política de Donald Trump nos EUA, a decisão britânica de deixar a União Europeia e a definição contrária ao acordo de paz na Colômbia têm sido elencadas como exemplos de uma crise da democracia global e dos sistemas de representação política.

O índice de democracia da consultoria Economist Intelligence Unit mais recente, divulgado em janeiro, já indicava uma "era de ansiedade", em que o sistema de governo popular sofre uma série de reveses pelo mundo.

Para o filósofo americano Jason Brennan, os três casos são símbolo de problemas na tomada de decisões políticas. Esses impasses favorecem a participação das pessoas em detrimento do conhecimento que elas têm sobre a realidade em questão –o que leva, segundo ele, a escolhas irracionais.

Este é o caso específico do "brexit", na visão de Brennan, em que as pessoas tomaram "uma decisão estúpida" porque não tinham informações sobre a realidade britânica. E é o modelo que aproximou Trump da Presidência dos EUA, apesar de fazer campanha com pouco apego a fatos reais e mentir em 71% das suas declarações, segundo o site PolitiFact, que checa discursos políticos.

Posturas críticas da elite intelectual ao funcionamento da democracia e à participação da população "ignorante" são quase tão antigas quanto o próprio sistema de governo, mas voltam a ter destaque por causa da crise de representatividade que parece disseminada pelo mundo –além dos exemplos citados acima, há a dificuldade de formação de um governo na Espanha, a crise política na Grécia e até mesmo o processo de impeachment no Brasil.
Em entrevista à Folha, por telefone, Brennan falou sobre suas críticas aos sistemas democráticos, reunidas no recente livro "Against Democracy" (contra a democracia, Princeton University Press, US$ 23,25), em que sugere a implementação de um sistema político diferente: a epistocracia. Ele defende que apenas uma elite com conhecimento aprofundado sobre temas de relevância nacional possa tomar decisões.

Criticado por sua visão de mundo "elitista", ele diz que a democracia ainda é o melhor sistema de governo, mas que isso não significa que não precise evoluir.

Folha - O senhor é um forte crítico das falhas da democracia, e em 2016 o mundo viu a ascensão de Donald Trump nos EUA e decisões controversas em plebiscitos como o "brexit" e o do acordo de paz na Colômbia. Há alguma relação entre esses três casos?

Jason Brennan - Sim, aparenta haver uma conexão entre esses casos. Em diferentes países há uma divisão que parece ir além da tradicional entre direita e esquerda.
É mais uma questão de eleitores rurais discordando do que está sendo proposto por eleitores urbanos e vice-versa. São desconexões econômicas que geram percepções diferentes a respeito da realidade vivida e faz com que eles votem de forma fundamentalmente diferente.
O motivo pelo qual decisões democráticas são fundamentalmente uma questão de justiça é porque são impostas a toda a população. O monopólio das tomadas de decisões é a própria natureza da política.

Em seu livro, sua posição vai além disso, indicando que, na democracia, as decisões são tomadas de forma irracional.
É inevitável que, na política, haja o monopólio das tomadas de decisão, mas isso vem com algumas responsabilidades. Quando falamos sobre decisões que são impostas involuntariamente e que envolvem alto risco, para que as decisões sejam justas e legítimas, elas devem ser tomadas de forma competente e com boa fé.
Isso significa que é preciso que a pessoa tomando as decisões precisa ter conhecimento dos fatos relevantes, entender a importância desses fatos e processá-los de forma racional.

Como a democracia pode ser mais racional?
Uma forma de ilustrar isso é pensar em um julgamento de um assassinato. O júri deve ao réu e à população que representa a seriedade na tomada de decisão. Ele precisa ter conhecimento sobre o caso, pensar sobre os fatos e evidências de forma racional, e tomar uma decisão com o objetivo de produzir justiça, e não por um capricho ou interesse pessoal.
Todo mundo concorda com isso em relação a um julgamento, e acho que deveríamos levar em consideração esse tipo de comportamento em relação não apenas ao júri, mas sobre os juízes, os legisladores, os líderes militares e até o eleitorado.

Como podemos colocar isso na perspectiva do "brexit" e da ascensão de Trump?
Há problemas na forma como os eleitores tomam decisões e no que eles acham que acontece no país. No caso do "brexit", os eleitores que votaram pela saída da União Europeia tinham informações equivocadas sobre a realidade britânica.
Eles superestimavam a proporção de imigrantes e minimizavam a importância de investimentos europeus no país, por exemplo. O lado que ganhou não sabia do que estava tratando ao tomar a decisão. Não conhecia os fatos e tomou uma decisão estúpida.

Como se pode evitar isso?
Ter um conhecimento rudimentar de políticas toma uma enorme quantidade de tempo e é incompatível com a divisão de trabalho na nossa sociedade. Não podemos esperar que as pessoas comuns tenham conhecimento suficiente para votar de forma inteligente sobre todos os temas.
A democracia representativa deveria consertar isso ao colocar no poder pessoas que se informam sobre o assunto em relação ao qual vai ser tomada uma decisão.

A democracia representativa não faz exatamente isso?
A democracia tem um certo grau de capacidade de compensar a ignorância dos eleitores, graças à representação, à burocracia independente e à existência da oposição. O sistema se sai melhor do que se poderia imaginar ao pensar que ele reflete as preferências do eleitorado.
Ainda assim, para ganhar eleições, candidatos sempre levam adiante ideias e políticas que correspondem ao que as pessoas querem. E o que as pessoas querem reflete o que elas sabem. Se elas não sabem muito, vão querer as coisas erradas.

O governo brasileiro está tentando passar medidas de austeridade e está sendo criticado. O governo não deveria ouvir a população?
O simples fato de uma política ser impopular não é necessariamente um ponto contra ela, pois nem todas as pessoas sabem como ela funciona.
Duvido que o brasileiro comum tenha condições de ter uma opinião bem informada sobre isso, como também não teria a população do Canadá ou da Alemanha. Saber se isso é uma boa ideia ou não é algo complicado, que depende de um conhecimento avançado de economia.
Uma questão óbvia: se vamos tomar uma decisão sobre o encanamento de uma casa, precisamos de conhecimento sobre o assunto. A maioria das pessoas não tem conhecimento sobre como o encanamento funciona, então não é preciso ter a opinião de todas as pessoas a respeito do encanamento, e a decisão precisa ser tomada por quem entende do assunto.

Seu posicionamento em relação à democracia é criticado como excludente e elitista.
Não acredito que as pessoas tenham um direito inerente ao voto, ou que o direito ao voto dê as pessoas uma posição de igualdade na sociedade. A democracia ainda é o melhor sistema, sem dúvida. Mas pode melhorar.

Em substituição, o senhor sugere a adoção da "epistocracia". Como isso funcionaria?
Como um sistema de tomada de decisões em que as pessoas que teriam direito a voto tivessem conhecimento real sobre as questões a serem decididas.

Não seria algo perigoso?
A epistocracia teria como sistema de freios a própria desconfiança das pessoas em relação a ela. Claro que ele não funcionaria perfeitamente em qualquer lugar, mas teria potencial em lugares onde democracias já funcionam. Seria um bom modelo na Dinamarca, por exemplo, mas não na Venezuela.

EPISTOCRACIA DEFENDE REPÚBLICA DOS SÁBIOS

Epistocracia (ou epistemocracia, como também aparece citado em trabalhos acadêmicos no Brasil), é um conceito de sistema político baseado na ideia de episteme. O termo foi usado por Platão na filosofia grega, no século 4o a.C., para se referir ao "conhecimento verdadeiro", em oposição à opinião infundada, sem reflexão.
Por esse sistema, o poder político não deveria ser distribuído igualmente a todos os cidadãos, em contraposição à democracia, mas sim estar nas mãos das pessoas sábias.
Surgida como ideia de um governo de reis filósofos em Platão, a epistocracia foi discutida como um possível governo de sábios por Aristóteles e chegou a ser considerada como modelo durante a República Romana –sem nunca ter sido implementada.
O conceito passou ainda por formulação moderna com John Stuart Mill (1806-1873), para quem as pessoas educadas deveriam ter votos extras numa democracia. Jason Brennan defende uma epistocracia que mantivesse as principais instituições democráticas, como partidos e eleições gerais.

RAIO-X: JASON BRENNAN

NASCIMENTO 1979
OCUPAÇÃO Professor de estratégia, ética, economia e políticas públicas da Universidade Georgetown
FORMAÇÃO Doutor em filosofia pela Universidade do Arizona
LIVROS "Against Democracy" (Contra a Democracia, Princeton University Press), "The Ethics of Voting" (A Ética do Voto, Princeton University Press), "Why Not Capitalism?" (Por que não Capitalismo?, Routledge Press) e "Markets without Limits" (Mercados sem Limites, Routledge Press)

Reportagem publicada na Folha de SP em 7 de novembro de 2016
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/11/1829957-decisao-politica-deveria-vir-dos-que-tem-conhecimento-diz-filosofo.shtml


Nenhum comentário: