domingo, 20 de março de 2016

84 - Socialismo à americana

Socialismo à americana? Por que os EUA não têm partido trabalhista

RODRIGO RUSSO
Folha de São Paulo 20/03/2016 

RESUMO Sociólogo revê a ideia vigente de que os EUA não precisariam do socialismo por serem a terra da oportunidade. Para Robin Archer, que define o vigor do pré-candidato democrata Bernie Sanders como fenomenal, o liberalismo caro aos americanos poderia beneficiar os trabalhadores a confrontar crescentes desigualdades.

"Um fenômeno notável". Assim o sociólogo político australiano Robin Archer, professor da London School of Economics, doutor pela Universidade de Oxford e especialista na cultura política americana, define a candidatura –e a competitividade– do senador democrata Bernie Sanders nas primárias presidenciais de seu partido.

Para Archer, o vigor da campanha de Sanders, que tem incomodado a favorita Hillary Clinton, com vitórias em seis Estados, prova que "o efeito político completo da crise financeira global só começa a se fazer sentir agora". "Tenha em mente que o realinhamento político nos EUA após a Grande Depressão só ocorreu cerca de sete anos depois do crash dos mercados", afirma o professor em entrevista à Folha, via e-mail.

O sociólogo prossegue: "A média das pesquisas de opinião mostra que ele derrotaria todo e qualquer candidato republicano, se fosse nomeado pelos democratas".
Essa chance hoje é remota, mas, ainda assim, Archer crê que o bom desempenho de Sanders "lança dúvidas" sobre a percepção de que as ideias dominantes nos EUA seriam um "obstáculo intransponível" às políticas progressistas.

O professor conhece como poucos as dificuldades históricas de políticas socialistas naquele país e a literatura predominante no século 20 sobre o ideário americano e sua suposta incompatibilidade com valores trabalhistas. Em 2007, o coordenador do curso de sociologia política da LSE lançou a obra"Why Is There No Labor Party in the United States?" [Princeton University Press, 368 págs., R$ 201,15; R$ 103,80 em e-book na Amazon.com.br].

No livro, cujo título inquire por que não há partido trabalhista nos EUA, Archer desafiou a resposta tradicionalmente sustentada por grandes nomes da sociologia política norte-americana, como Seymour Martin Lipset (1922-2006), professor que passou por Columbia e por Harvard.
Lipset argumentava que os EUA são uma nação com um conjunto particular de dogmas, um credo, ao qual atribuiu o nome de "americanismo": liberdade, igualitarismo, individualismo, populismo e "laissez-faire". Dizia ainda que os americanos continuavam sendo mais meritocráticos e antiestatistas que outros povos.

O pensamento de Lipset sobre o tema é frequentemente resumido em quatro palavras: "sem feudalismo, sem socialismo".

A frase ganhou notoriedade em todo o continente: em passagem curiosa para o leitor brasileiro, Lipset conta o que ouviu em encontro com Fernando Henrique Cardoso. Bem antes de ser presidente, o brasileiro explicou ao sociólogo americano que havia criado um partido social-democrata no Brasil porque a consciência de classes socialista não tem apelo nas Américas, sendo menos saliente que na Europa pós-feudal.

Pois Archer discorda, e oferece uma interpretação bastante distinta sobre o papel do liberalismo no americanismo, particularmente no final do século 19 –quando sindicatos nos EUA discutiam seriamente a criação de um partido trabalhista/socialista.
"Tenho muitos pontos de discordância com Lipset e outras interpretações convencionais. Mas a diferença central é que eles tipicamente veem o liberalismo como uma característica essencial ao 'credo americano', argumentando que atuou como limitação para o desenvolvimento de políticas socialistas ou trabalhistas. Tento mostrar que a força do liberalismo americano oferecia oportunidades ideológicas para proponentes de políticas de esquerda. Eles podiam argumentar que estavam simplesmente tentando cumprir integralmente a promessa desses valores americanos", explica Archer.

IDENTIDADE
O sociólogo destaca em sua análise a desigualdade vigente nos EUA nos anos 1880 e 1890. Nesse período, "muitos dos mais ricos e mais proeminentes comerciantes, industriais e banqueiros estabeleceram uma identidade de classe distinta e começaram a conscientemente emular um estilo de vida aristocrático".

Há detalhes saborosos na pesquisa empreendida por Archer, como a descrição de um baile promovido pela mulher do advogado Bradley Martin, Cornelia, em 1897.

O interior do chiquérrimo hotel Waldorf Astoria, em Nova York, foi inteiramente decorado para ser uma réplica do palácio de Versalhes. Martin se vestiu como o rei francês Luís 15 para a ocasião. Cornelia, por sua vez, usou um colar que havia pertencido à própria Maria Antonieta para recepcionar seus convidados. A festa cumpriu sua função a contento e entrou para a história como uma das mais extravagantes do século 19.

Como o democrata Sanders está hoje atento à desigualdade social nos EUA, resumida pelo movimento Ocupe Wall Street na frase "Nós somos o 99%", os líderes sindicais daquela época perceberam o descompasso entre a promessa e a realidade nacionais de então.

Entre eles, Archer destaca especialmente Eugene Debs (1855-1926), que concorreu como socialista cinco vezes à Presidência. Em um de seus discursos, Debs alertava: "Apesar dos melhores esforços dos 'pais fundadores', o país tem testemunhado o crescimento contínuo de aristocratas sem título".

Criava-se, assim, um paralelo indesejado com a Europa: a aristocracia da riqueza consolidava-se nos EUA, da mesma forma como a aristocracia de sangue fizera no Velho Continente.
Debs, em vez de negar o "credo americano" liberal, exortava sua recuperação. Em um discurso para mais de 100 mil pessoas após ser libertado de um período na prisão por greve, em 1895, fez um de seus apelos mais diretos: "O tema desta noite é a liberdade pessoal; ou dar a ela sua total profundidade, grandeza e altura, a liberdade americana". Para preservar os valores que fundaram a democracia americana do sequestro aristocrático, Debs considerava "uma necessidade imperativa que os trabalhadores organizados tomassem uma posição unida nas urnas".

Não tomaram. O máximo de votos que Debs obteve nas candidaturas foi 6% do total, na de 1912. E isso não porque o socialismo nunca tenha sido forte nos EUA, diz Archer, mas porque era extremamente radical naquele país.

Os diversos grupos socialistas não conseguiam se unir por divergências de interpretação sobre o que realmente seria a versão correta do socialismo; tampouco aceitavam a união com trabalhadores agrários, que muitos grupos na Europa promoveram como primeiro passo para ganhar força.

As consequências da falta de um grupo partidário que defendesse os interesses dos trabalhadores, como o Partido Trabalhista no Reino Unido ou o Partido Social-Democrata na Alemanha, são sentidas até hoje.

"Sociólogos políticos sabem, por estudos comparativos, que fortes partidos com bases trabalhistas tiveram um papel importante no desenvolvimento de Estados de bem-estar social. Então é muito provável que a fraqueza do 'welfare state' nos EUA seja parcialmente resultado do fracasso em estabelecer um partido trabalhista eleitoralmente viável", analisa Archer.
Outras duas consequências descritas pelo professor são a debilidade dos sindicatos americanos e, principalmente, o grau de desigualdade na distribuição de renda do país –um fenômeno que Sanders, o socialista na disputa deste ano, não se cansa de apontar.

Quanto à possibilidade de um candidato democrata implantar reformas de cunho socialista, Archer avalia que "na maior parte de suas histórias, tanto democratas quanto republicanos estiveram mais alinhados a interesses étnico-religiosos do que a interesses de classe". "Houve períodos, no entanto, como depois do New Deal [conjunto de políticas do presidente Franklin Delano Roosevelt para resgatar a economia nos anos 1930], em que os democratas adotaram características muito parecidas às de social-democratas."

Talvez pelo distanciamento garantido pelo fato de não ser americano, Archer chega a uma conclusão inconveniente aos ufanistas: "Paradoxalmente, em uma terra que frequentemente se define como democrática, secular e liberal, é a importância da repressão, da religião e do socialismo o que ajuda a explicar o fracasso de estabelecer um partido trabalhista".

RODRIGO RUSSO, 29, é repórter da Folha