domingo, 19 de fevereiro de 2017

99 - A grande mídia e a desinformação

A GRANDE MÍDIA E A DESINFORMAÇÃO
COMO OS GRANDES JORNAIS E AS MÍDIAS SOCIAIS TENTAM RESPONDER À INVENÇÃO DELIBERADA DE FATOS
Nelson de Sá - Folha de SP, 19 de fevereiro de 2017

RESUMO 

Texto compila iniciativas de publicações estrangeiras com vistas a frear a disseminação de notícias falsas. Autor mostra que Facebook e Google, atores decisivos para o fenômeno adquirir o vulto atual, financiam redes de checagem, apesar dos dividendos que auferem da leitura maciça de reportagens enviesadas.

TEXTO

Em 8 de abril de 1984, o "New York Times" publicou a reportagem "O império em expansão de Donald Trump". Descrevia-se um evento esportivo no qual uma multidão, incluindo "alguns dos mais ricos, poderosos e famosos nova-iorquinos", cercava aos gritos o empresário, então com 37 anos, como se fosse "estrela de rock".
Trump não reclamou.

Ao longo do último mês, já presidente dos Estados Unidos e desgostoso da cobertura cada vez mais negativa, o mesmo Trump chamou o jornal de "fake news" (notícia ou noticiário falso) pelo menos três vezes -talvez tenha aumentado esse número desde a conclusão desta edição, na quinta-feira (16), pois é sua leitura diária e alvo preferencial no Twitter.
A exemplo de outros políticos, ele usa a seu favor uma expressão criada para descrever outra coisa, uma pandemia anterior à eleição americana: sites e indivíduos que produzem narrativas sensacionalistas, aparentemente jornalísticas, mas falsas, para ganhar dinheiro com publicidade em plataformas como Facebook e Google.

Em sua versão distorcida, "fake news" tornou-se clichê para diversos governantes interessados em desmerecer o jornalismo crítico ou simplesmente verdadeiro.

Em recente entrevista ao Yahoo! News, por exemplo, o ditador da Síria, Bashar al-Assad, descartou como notícia falsa o relatório da Anistia Internacional sobre assassinatos em prisões de seu país.

O "NYT" se armou para o combate com Trump e seus tuítes, eles próprios uma fonte de falsidades.

Três dias antes da posse, o jornal anunciou ter separado US$ 5 milhões (R$ 15,5 milhões) adicionais para a cobertura do novo governo. Desde então, tem publicado enunciados como "Trump não vai voltar atrás em sua mentira sobre fraude eleitoral. Aqui estão os fatos".

O diário tomou a frente na reação institucional aos desmandos do presidente americano, mas os outros dois principais jornais do país, "The Washington Post" e "The Wall Street Journal", também adotaram cobertura obstinada, ainda que menos agressiva. Evitam, por exemplo, usar a palavra "mentira".

O "WP" tem há cinco anos uma estrutura de checagem de fatos, que usa uma escala de Pinóquios para classificar informações questionáveis, e o "NYT" admite montar a sua, mas a resposta do jornalismo profissional americano à chamada era da pós-verdade tem sido simples: mais e melhor jornalismo.

Já se fala até em "guerra de reportagem" entre os grandes jornais americanos.

JORNALISMO FORTE

A resposta não se restringe aos EUA. Em levantamento do Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo, da Universidade de Oxford (Inglaterra), feito com 143 editores e executivos de veículos de comunicação de 24 países, inclusive o Brasil, 70% afirmaram que a preocupação generalizada com notícias falsas fortalecerá o jornalismo em 2017.

Para tanto, segundo um editor irlandês destacado no estudo, a mídia de qualidade precisa ser "mais afirmativa sobre seu jornalismo e sobre como ele é feito, articular os valores que sustentam esse jornalismo". No "NYT", desde a eleição de Trump, os anúncios de assinatura levam frases como "Verdade. É vital para a democracia".

O combate contra as notícias falsas parte de base mais firme do que se pensava. Segundo levantamento do Centro de Pesquisas Pew (EUA), 56% dos americanos consumidores de informação conseguem identificar a fonte da notícia. Para o estudo, o resultado é positivo e "especialmente relevante à luz das notícias fabricadas".

A pesquisa também mostra, porém, que essa capacidade de identificação cai se a notícia é acessada via rede social: 10% dos entrevistados chegaram a errar, apontando como fonte o Facebook, que não produz notícias, só as distribui.
É mais uma indicação de que o foco da proliferação de notícias falsas está nas plataformas de tecnologia, que estimulam a produção e o consumo de enunciados sensacionalistas e sem base. A solução, portanto, não pode partir só das organizações jornalísticas.

Na política, o fenômeno chamou a atenção pela primeira vez com o "brexit", o plebiscito que decidiu em junho de 2016 pela saída do Reino Unido da União Europeia.

Evidenciou-se que a persistência das mentiras na campanha não se devia ao vilão tradicional -o magnata Rupert Murdoch, dono de jornais e canais de televisão-, e sim à rede social de Mark Zuckerberg.

Como identificou Emily Bell, diretora do Centro Tow para o Jornalismo Digital, da Universidade Columbia (EUA), foi nos ambientes fechados do Facebook e de outras plataformas, nas ilhas que só compartilham conteúdo de quem pensa da mesma maneira, que as notícias falsas se difundiram sem questionamento, imunes à busca pelo contraditório que o jornalismo costuma empreender.

De maneira geral, segundo levantamento conjunto da Universidade Columbia com o Instituto Nacional de Pesquisa em Informática e Automação, da França, 59% dos links compartilhados nas mídias sociais não são sequer abertos por quem os compartilha.

No comentário de um dos pesquisadores, "as pessoas se mostram mais dispostas a compartilhar um texto do que a lê-lo, formam opinião baseada num sumário ou num sumário de um sumários". Um comportamento típico do "consumo contemporâneo de informação", em que a capacidade de atenção é cada vez menor.
A questão tem forte viés financeiro e não se limita à mídia social. Facebook e Google, plataformas que duopolizam a publicidade digital, abocanhando 68% do total nos EUA, têm modelos de negócio que recompensam usuários e sites que ajudem a trazer tráfego para os seus inventários. Um tráfego que tende a ser tanto maior quanto mais escandalosa a postagem, ainda que falsa.

FACEBOOK

Para o analista Frederic Filloux, "deixando de lado a necessidade de dar fim ao seu pesadelo atual de relações públicas", devido às acusações de que ajudou a eleger Trump, "o Facebook não tem interesse objetivo em corrigir seu problema de notícias falsas". Ou seja, não tem interesse em afugentar seus consumidores com informações verdadeiras -e muitas vezes desagradáveis.

Daí a proliferação de sites com notícias retumbantes e falsas sobre a eleição americana, criados às dezenas por jovens da Macedônia em busca de audiência nos EUA. A maioria era pró-Trump, mas não havia motivação política; o Facebook, segundo os jovens, paga quatro vezes mais por leitor americano.

Apesar do ceticismo quanto ao interesse objetivo do Facebook e da primeira reação de Zuckerberg, que chamou de maluca a hipótese de que notícias falsas tenham afetado a eleição, a plataforma começou a se movimentar, buscando parcerias com o jornalismo profissional.

Estimulou a formação de uma rede internacional de checagem de fatos ligada ao Instituto Poynter para Estudos de Mídia (EUA), que na reta final acrescentou, além de checadores independentes, organizações como a rede de televisão ABC e a agência Associated Press.

Na virada do ano, a equipe começou a confirmar ou refutar informações veiculadas na rede social, um experimento ainda em fase de testes. O Google promove ação paralela em seu serviço de buscas, também com checadores, tendo estreado a iniciativa na quarta-feira (15) em países da América Latina, entre os quais o Brasil.
O foco da atenção política ocidental, de todo modo, aos poucos deixa os EUA e se volta para a União Europeia, onde França e Alemanha têm eleições marcadas para abril e setembro, respectivamente.

Na primeira semana de fevereiro, Facebook e Google lançaram em Paris um projeto conjunto de checagem de fatos, chamado CrossCheck, abrangendo 15 veículos franceses de jornalismo, como a agência France Presse, o canal de notícias BFM e os jornais "Le Monde", "Les Échos" e "Libération".

O CrossCheck entra no ar no dia 27 de fevereiro. Na Alemanha, já em meados de janeiro, às pressas e ainda sem o Google, o Facebook lançou projeto semelhante depois de uma escalada de alertas públicos, inclusive da chanceler Angela Merkel, contra os vários sinais de notícias falsas na plataforma.

Assustados com a ascensão da extrema-direita e com as votações nos EUA e no Reino Unido, políticos alemães ameaçam os gigantes da tecnologia com multas e mudanças legislativas. Entre as falsidades já constatadas estão fotos de Merkel com um suposto terrorista e elogios de um líder do Partido Verde a um refugiado que cometeu estupro e homicídio.

Em discurso no Parlamento, a chanceler alemã lembrou que "o populismo e os extremismos políticos estão crescendo nas democracias ocidentais". Em seguida, resumiu: "As opiniões não são mais formadas como há 25 anos. Hoje temos sites falsos, reforçando opiniões com certos algoritmos, e temos de aprender a lidar com eles".

De sua parte, os jornais alemães, que nos últimos três anos viram ressurgir nos discursos extremistas a expressão "Lügenpresse", imprensa mentirosa, clichê usado historicamente por Hitler, já se armam para o combate.

NELSON DE SÁ, 56, é repórter especial da Folha. Assina a coluna "Toda Mídia" e o blog Cacilda no site do jornal. 


98 - Desinformação e pós-verdade

DESINFORMAÇÃO E PÓS-VERDADE
E SE O ERRO, A FABULAÇÃO, O ENGANO REVELAREM-SE TÃO ESSENCIAIS QUANTO A VERDADE?
Oswaldo Giacoia Junior - Folha de SP, 19 de fevereiro de 2017

RESUMO 

O autor analisa o atual fenômeno de relativização da verdade à luz de conceitos como o perspectivismo nietzschiano. Ele sustenta que, num cenário de produção e consumo ininterruptos de informação, a ambiguidade do conteúdo difundido parece ser pré-requisito para despertar o interesse do público e fidelizá-lo.

TEXTO

Integram o cortejo dos espectros que rondam Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, certas noções vagas como "pós-verdade" e "cultura pós-factual", as quais, a despeito de sua fluidez, aparecem no debate público como se fossem conceitos filosóficos.

Ambas designam a poluição da mídia por notícias falsas, ou "fake news", e geram uma transformação nas relações entre verdade e mentira. Já não se pergunta simplesmente se uma notícia é falsa ou verdadeira, mas em que consiste a noção de verdade de uma informação. Ou seja, a própria ideia de verdade surge como um problema.

Declarações ambíguas, enviesadas, enganosas ou derivadas de enganos são na prática equiparadas a mentiras inventadas deliberadamente pelos mais diversos motivos: ganhar dinheiro de anunciantes, alcançar resultados eleitorais específicos, formar e influenciar correntes de opinião, induzir metas de políticas públicas e reforçar vínculos de identificação coletiva, formatando maneiras de pensar e sentir em determinados segmentos sociais.

Avulta entre essas figuras a "disinformatzya": o objetivo aqui não é defender uma bandeira particular ou atacar um adversário determinado, mas causar desinformação. Inundam-se os suportes de difusão de mensagens com afirmações falaciosas e distorções sensacionalistas no intuito de minar as bases de confiança tanto dos veículos tradicionais de comunicação quanto das diferentes redes informáticas que se aninham na internet.

Trata-se, portanto, de solapar o crédito de informações que se pretendem objetivas, como se não houvesse um critério para diferenciar a notícia falsa da verdadeira. O leitor, largado num meio sabidamente repleto de mentiras, pode nivelar por baixo e duvidar de todos os conteúdos publicados, ou pode agarrar-se àqueles que lhe pareçam mais apropriados.
Que importa se, objetivamente, era possível medir o tamanho do público presente à cerimônia de posse de Trump? O governo americano sentiu-se à vontade para mencionar um número maior, iniciativa que depois uma assessora do presidente definiu como a apresentação de "fatos alternativos".

Não existe nesse tipo de atitude nada que se confunda com a postura filosófica do perspectivismo, segundo o qual o ponto de vista de cada um interfere no modo de conhecer e apreender a verdade (que existe). Na era da "pós-verdade", tudo se passa como se a verdade simplesmente não existisse e todos os pontos de vista tivessem valor idêntico -como se a suposta "verdade" divulgada pelo governo americano não fosse pior do que a "verdade" factual apurada pelos jornais tradicionais.

Ora, se todas as "verdades" são igualmente válidas, se cada cidadão pode escolher o ponto de vista de seu agrado, qual o sentido de um debate público que busque o esclarecimento? Em outras palavras, está em jogo o emprego sistemático de técnicas de propaganda para obliterar e entorpecer a capacidade de pensar criticamente.

O filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), falsamente identificado como precursor desse relativismo ambientado na penumbra em que todos os gatos são pardos, foi, em vez disso, o pensador que antecipou um conflito eventual que pode nos ajudar a compreender as agruras do momento problemático que atravessamos.

É conhecida sua formulação: e se o erro, a falsidade, o engano revelarem-se, tanto quanto a verdade, essenciais como meios úteis para a conservação da vida? Essa pergunta incomoda o pensamento filosófico desde que Nietzsche teve a ousadia de colocá-la em toda sua extensão e profundidade.

Ora, os fenômenos que nos confrontam hoje podem ser interpretados na chave hermenêutica que Nietzsche generosamente nos colocou nas mãos. Vivenciamos um conflito entre verdade e condições de existência. De que existência, porém, se trata aqui? Daquela que, como pensava Nietzsche, sempre se produz em termos de relações de poder, de jogos de força em que encontram apoio e expressão interesses vitais, desejos, temores, expectativas de reconhecimento, aspirações de domínio e estratégias de resistência.

Identifiquemos, então, algumas das variáveis no debate atual sobre a definição e as consequências das "fake news" para os rumos da cultura e da política nas democracias contemporâneas.

VERIFICAÇÃO

Com a explosão dos novos meios de comunicação no ambiente digital, distribuídos pela malha includente da sociedade global em arranjos de alta capilaridade (rizomáticos, a rigor) e se reproduzindo em milhares de centros virtuais dificilmente localizáveis e responsabilizáveis (nos sentidos ético e jurídico), torna-se instável a possibilidade de verificação isenta de fatos, bem como muito mais dinâmica e inventiva a produção e a circulação de mensagens, seja qual for o seu teor.

Em sociedades lastreadas na troca de informações e na comunicação sustentada por tecnologias de ponta, que se autorreplicam e formatam todos os setores da vida -economia, política, educação, cultura etc.-, os interesses estratégicos e as condições de existência estão estreitamente vinculados às possibilidades, tecnologicamente facilitadas, de "tornar-comum" o conteúdo veiculado, ou seja, de difundi-lo a um universo amplo de pessoas e de reduzi-lo a sua dimensão mais simplória, num movimento que cria oportunidades para o vulgar e o sensacionalista.
Com isso, torna-se possível inserir nessas redes tudo o que for capaz de abastecê-las com eficiência, passando, então, a fazer parte da "nutrição cotidiana" de cada um. Não importa tanto se o conteúdo é "verdadeiro"; importa acompanhar "como a coisa rola". A ambiguidade das mensagens é condição necessária para manter acesa a avidez por "novidades", a reiteração da expectativa curiosa em espiral infinita.

Informações transformaram-se em mercadorias intercambiáveis num arranjo cujos agentes são reduzidos ao denominador comum de consumidores e cuja lógica operante é a da produção e da circulação mercantil.
Razão pela qual importa menos a pretensão de validade do que a expectativa de realização de desejo que a informação venha a satisfazer. Por isso adquire plausibilidade o pseudoargumento: afinal, o que é a verdade, já que temos bons motivos para descrer de toda verificação factual?

A imputação de falsidade por parte de um opositor funciona como seu contrário. Reforça convicções previamente firmadas, preconceitos arraigados e impermeáveis a razões, mas dóceis às moções afetivas de autoidentificação.
Daí por que notícias inventadas na esteira do sensacionalismo midiático não são desqualificadas, mas, ao contrário, reafirmadas e até estimuladas pelos melhores esforços para desmascará-las; pois o que importa para os atores e as organizações sociais interessados na proliferação desse tipo de comunicação é manter acesa a chama da curiosidade que elas atiçam e alimentar o falatório até suas derradeiras possibilidades de rendimento.

Uma explicação para isso encontra-se na lógica interna de tais processos, infensos ao escrutínio crítico, já que o único critério que conta são os acessos, ou indicadores quantitativos de consumo. Desenvolve-se uma simbiose perfeita entre a comprovada demanda crescente dos clientes e o rendimento auferido graças à divulgação de material publicitário.
Dado que os indicadores de acesso substituem os antigos critérios de verificação, embute-se o risco de esse novo parâmetro gerar um círculo vicioso: a quantidade de acessos quase sempre está em relação com o potencial de atração contido na distorção da mensagem. Isso significa que o horizonte de avaliação é o do impacto causado.

Para manter vivo o interesse pela informação vale tudo, inclusive induzir e filtrar seletivamente as escolhas preferenciais do leitor por meio de algoritmos que "adivinham" sites mais consentâneos com suas tendências. As possibilidades e limites da apropriação político-ideológica dos conteúdos, bem como aquelas de seu controle responsável, são virtualmente indetermináveis, e isso a despeito de todas as catastróficas consequências que esse desregramento pode causar, dentre as quais o estímulo ao cinismo irresponsável, o desfecho eleitoral pernicioso e a destruição sistemática de reputações.

A capacidade de pensar por si e de assumir responsabilidades por opiniões e ações passa pela antiga e saudável desconfiança e pelo esforço de nos distanciarmos do que se nos pretende impingir como última novidade, como sinal dos tempos da "pós-verdade".

É possível que se oculte aí apenas um velho fetiche, uma manobra diversionista para desviar a atenção e dispensar da reflexão, reforçando o isolamento narcísico que parece estar vinculado à inclusão aparente e à conexão em redes de comunicação com alcance planetário.

OSWALDO GIACOIA JUNIOR, 62, é professor titular de história da filosofia contemporânea e ética na Unicamp


97 - Em defesa da epistocracia

EM DEFESA DA EPISTOCRACIA

A ascensão política de Donald Trump nos EUA, a decisão britânica de deixar a União Europeia e a definição contrária ao acordo de paz na Colômbia têm sido elencadas como exemplos de uma crise da democracia global e dos sistemas de representação política.

O índice de democracia da consultoria Economist Intelligence Unit mais recente, divulgado em janeiro, já indicava uma "era de ansiedade", em que o sistema de governo popular sofre uma série de reveses pelo mundo.

Para o filósofo americano Jason Brennan, os três casos são símbolo de problemas na tomada de decisões políticas. Esses impasses favorecem a participação das pessoas em detrimento do conhecimento que elas têm sobre a realidade em questão –o que leva, segundo ele, a escolhas irracionais.

Este é o caso específico do "brexit", na visão de Brennan, em que as pessoas tomaram "uma decisão estúpida" porque não tinham informações sobre a realidade britânica. E é o modelo que aproximou Trump da Presidência dos EUA, apesar de fazer campanha com pouco apego a fatos reais e mentir em 71% das suas declarações, segundo o site PolitiFact, que checa discursos políticos.

Posturas críticas da elite intelectual ao funcionamento da democracia e à participação da população "ignorante" são quase tão antigas quanto o próprio sistema de governo, mas voltam a ter destaque por causa da crise de representatividade que parece disseminada pelo mundo –além dos exemplos citados acima, há a dificuldade de formação de um governo na Espanha, a crise política na Grécia e até mesmo o processo de impeachment no Brasil.
Em entrevista à Folha, por telefone, Brennan falou sobre suas críticas aos sistemas democráticos, reunidas no recente livro "Against Democracy" (contra a democracia, Princeton University Press, US$ 23,25), em que sugere a implementação de um sistema político diferente: a epistocracia. Ele defende que apenas uma elite com conhecimento aprofundado sobre temas de relevância nacional possa tomar decisões.

Criticado por sua visão de mundo "elitista", ele diz que a democracia ainda é o melhor sistema de governo, mas que isso não significa que não precise evoluir.

Folha - O senhor é um forte crítico das falhas da democracia, e em 2016 o mundo viu a ascensão de Donald Trump nos EUA e decisões controversas em plebiscitos como o "brexit" e o do acordo de paz na Colômbia. Há alguma relação entre esses três casos?

Jason Brennan - Sim, aparenta haver uma conexão entre esses casos. Em diferentes países há uma divisão que parece ir além da tradicional entre direita e esquerda.
É mais uma questão de eleitores rurais discordando do que está sendo proposto por eleitores urbanos e vice-versa. São desconexões econômicas que geram percepções diferentes a respeito da realidade vivida e faz com que eles votem de forma fundamentalmente diferente.
O motivo pelo qual decisões democráticas são fundamentalmente uma questão de justiça é porque são impostas a toda a população. O monopólio das tomadas de decisões é a própria natureza da política.

Em seu livro, sua posição vai além disso, indicando que, na democracia, as decisões são tomadas de forma irracional.
É inevitável que, na política, haja o monopólio das tomadas de decisão, mas isso vem com algumas responsabilidades. Quando falamos sobre decisões que são impostas involuntariamente e que envolvem alto risco, para que as decisões sejam justas e legítimas, elas devem ser tomadas de forma competente e com boa fé.
Isso significa que é preciso que a pessoa tomando as decisões precisa ter conhecimento dos fatos relevantes, entender a importância desses fatos e processá-los de forma racional.

Como a democracia pode ser mais racional?
Uma forma de ilustrar isso é pensar em um julgamento de um assassinato. O júri deve ao réu e à população que representa a seriedade na tomada de decisão. Ele precisa ter conhecimento sobre o caso, pensar sobre os fatos e evidências de forma racional, e tomar uma decisão com o objetivo de produzir justiça, e não por um capricho ou interesse pessoal.
Todo mundo concorda com isso em relação a um julgamento, e acho que deveríamos levar em consideração esse tipo de comportamento em relação não apenas ao júri, mas sobre os juízes, os legisladores, os líderes militares e até o eleitorado.

Como podemos colocar isso na perspectiva do "brexit" e da ascensão de Trump?
Há problemas na forma como os eleitores tomam decisões e no que eles acham que acontece no país. No caso do "brexit", os eleitores que votaram pela saída da União Europeia tinham informações equivocadas sobre a realidade britânica.
Eles superestimavam a proporção de imigrantes e minimizavam a importância de investimentos europeus no país, por exemplo. O lado que ganhou não sabia do que estava tratando ao tomar a decisão. Não conhecia os fatos e tomou uma decisão estúpida.

Como se pode evitar isso?
Ter um conhecimento rudimentar de políticas toma uma enorme quantidade de tempo e é incompatível com a divisão de trabalho na nossa sociedade. Não podemos esperar que as pessoas comuns tenham conhecimento suficiente para votar de forma inteligente sobre todos os temas.
A democracia representativa deveria consertar isso ao colocar no poder pessoas que se informam sobre o assunto em relação ao qual vai ser tomada uma decisão.

A democracia representativa não faz exatamente isso?
A democracia tem um certo grau de capacidade de compensar a ignorância dos eleitores, graças à representação, à burocracia independente e à existência da oposição. O sistema se sai melhor do que se poderia imaginar ao pensar que ele reflete as preferências do eleitorado.
Ainda assim, para ganhar eleições, candidatos sempre levam adiante ideias e políticas que correspondem ao que as pessoas querem. E o que as pessoas querem reflete o que elas sabem. Se elas não sabem muito, vão querer as coisas erradas.

O governo brasileiro está tentando passar medidas de austeridade e está sendo criticado. O governo não deveria ouvir a população?
O simples fato de uma política ser impopular não é necessariamente um ponto contra ela, pois nem todas as pessoas sabem como ela funciona.
Duvido que o brasileiro comum tenha condições de ter uma opinião bem informada sobre isso, como também não teria a população do Canadá ou da Alemanha. Saber se isso é uma boa ideia ou não é algo complicado, que depende de um conhecimento avançado de economia.
Uma questão óbvia: se vamos tomar uma decisão sobre o encanamento de uma casa, precisamos de conhecimento sobre o assunto. A maioria das pessoas não tem conhecimento sobre como o encanamento funciona, então não é preciso ter a opinião de todas as pessoas a respeito do encanamento, e a decisão precisa ser tomada por quem entende do assunto.

Seu posicionamento em relação à democracia é criticado como excludente e elitista.
Não acredito que as pessoas tenham um direito inerente ao voto, ou que o direito ao voto dê as pessoas uma posição de igualdade na sociedade. A democracia ainda é o melhor sistema, sem dúvida. Mas pode melhorar.

Em substituição, o senhor sugere a adoção da "epistocracia". Como isso funcionaria?
Como um sistema de tomada de decisões em que as pessoas que teriam direito a voto tivessem conhecimento real sobre as questões a serem decididas.

Não seria algo perigoso?
A epistocracia teria como sistema de freios a própria desconfiança das pessoas em relação a ela. Claro que ele não funcionaria perfeitamente em qualquer lugar, mas teria potencial em lugares onde democracias já funcionam. Seria um bom modelo na Dinamarca, por exemplo, mas não na Venezuela.

EPISTOCRACIA DEFENDE REPÚBLICA DOS SÁBIOS

Epistocracia (ou epistemocracia, como também aparece citado em trabalhos acadêmicos no Brasil), é um conceito de sistema político baseado na ideia de episteme. O termo foi usado por Platão na filosofia grega, no século 4o a.C., para se referir ao "conhecimento verdadeiro", em oposição à opinião infundada, sem reflexão.
Por esse sistema, o poder político não deveria ser distribuído igualmente a todos os cidadãos, em contraposição à democracia, mas sim estar nas mãos das pessoas sábias.
Surgida como ideia de um governo de reis filósofos em Platão, a epistocracia foi discutida como um possível governo de sábios por Aristóteles e chegou a ser considerada como modelo durante a República Romana –sem nunca ter sido implementada.
O conceito passou ainda por formulação moderna com John Stuart Mill (1806-1873), para quem as pessoas educadas deveriam ter votos extras numa democracia. Jason Brennan defende uma epistocracia que mantivesse as principais instituições democráticas, como partidos e eleições gerais.

RAIO-X: JASON BRENNAN

NASCIMENTO 1979
OCUPAÇÃO Professor de estratégia, ética, economia e políticas públicas da Universidade Georgetown
FORMAÇÃO Doutor em filosofia pela Universidade do Arizona
LIVROS "Against Democracy" (Contra a Democracia, Princeton University Press), "The Ethics of Voting" (A Ética do Voto, Princeton University Press), "Why Not Capitalism?" (Por que não Capitalismo?, Routledge Press) e "Markets without Limits" (Mercados sem Limites, Routledge Press)

Reportagem publicada na Folha de SP em 7 de novembro de 2016
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/11/1829957-decisao-politica-deveria-vir-dos-que-tem-conhecimento-diz-filosofo.shtml