segunda-feira, 22 de março de 2010

4 - Orientalismo ou secularização?

Pessoal, a reportagem abaixo, de Amauri Arrais, saiu no G1. Ela trata da proibição do uso do véu islâmico em locais públicos na França. A questão pode ser interpretada como um exemplo de choque de civilizações, de orientalismo ou de secularização.

Mulheres muçulmanas veem ‘islãfobia’ em tentativa de proibir uso de véu

França pode aprovar lei para banir uso de vestimenta em lugares públicos.Mulheres que utilizam véu defendem direito de seguir preceito religioso.

Uma burca de nove metros de altura cobriu a estátua que simboliza a República Francesa, em Paris, no último sábado (6), em uma comemoração antecipada do Dia Internacional da Mulher. O protesto de uma organização feminista, que pedia mais rapidez na votação de uma lei que proíbe o véu islâmico em locais públicos, é mais um capítulo de uma novela que se arrasta há anos no país.

No início do ano, uma comissão parlamentar recomendou a proibição do uso do véu em repartições e transportes públicos. A decisão seguiu-se a um discurso do presidente Nicolas Sarkozy que, em apoio à iniciativa dos parlamentares, em junho do ano passado, disse que o uso da burca não era uma questão religiosa, mas “uma questão de liberdade e de dignidade das mulheres”.

“O véu pra mulher muçulmana é, antes de mais nada, um ato de obediência a Deus. Toda mulher quando usa está obedecendo um mandamento religioso. O Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, tem dois versículos bem claros sobre isso”, afirma Magda Aref Abdul Latif, 32, ela mesma adepta do véu desde os 14 anos.

Embora admita que a visão do véu como símbolo de submissão ou imposição à mulher muçulmana ainda seja comum no Ocidente, Magda, que é formada em ciências sociais pela USP (Universidade de São Paulo), vê na negação da questão religiosa uma tentativa de aprovar leis para banir a vestimenta.

Existem muitas mulheres muçulmanas que não obedecem todos os mandamentos da religião e por isso não usam. Essa nuance, não é que não eles [os políticos] não saibam, mas eles tentam tirar a religiosidade do debate para conseguir aprovar essas leis."

A opinião é compartilhada pela biomédica Nadia Hussein, 28, para quem o uso de véu, além de uma obrigação religiosa, é também parte da “maturidade religiosa” da mulher islâmica. “Religiosamente, o correto é usar quando na adolescência, quando se atinge a menarca [primeira menstruação]. A mulher não coloca o véu porque o marido, ou o pai querem, mas porque Deus quer”, diz.

Para Nadia, que faz uso do véu desde os 21 anos, sob o argumento de que querem “livrar as mulheres da opressão”, as leis podem “caracterizar as mulheres muçulmanas”. “O uso do véu é como a oração que é feita cinco vezes ao dia ou como o jejum durante o Ramadã [o mês sagrado muçulmano], que nós aguardamos ansiosamente para praticar. Se você pensar, as freiras também utilizam véu e não há contestação.”

'Islãfobia'

Pesquisadora de comunidades islâmicas, a professora de antropologia da Unicamp Francirosy Campos Barbosa Ferreira vê ainda no caso da França, país que tem a maior comunidade muçulmana da Europa, um exemplo de “islãfobia”, ou rejeição aos muçulmanos.

“[A lei] vai libertar as mulheres do quê? O que é liberdade? A gente quer olhar para o mundo árabe com olhos ocidentais, não quer entender a lógica do outro. Mas o significado da França a gente sabe que é político”, questiona a antropóloga, segundo a qual a aprovação da lei seria “a melhor maneira” de afastar um dos principais símbolos da religião.

A socióloga Magda Aref faz coro. “Na França, há um incômodo visual claro. Um país que fala tanto em liberdade tem que garantir o mesmo direito de usar saia e mini-blusa à mulher que quer se cobrir inteira, por que não?”

Crucifixo x véu

O debate sobre a burca é resquício de uma controvérsia sobre o uso de véus por meninas muçulmanas na sala de aula, que inflamou a França por uma década. Em 2004 foi, aprovada a lei que proíbe estudantes de usarem símbolos claros de sua religião nas escolas públicas.

Magda Aref observa uma diferença clara. “Se um cristão deixar de usar o crucifixo, ele só está deixando de fazer algo de vontade própria. Não há mandamento bíblico que mande usar um crucifixo. Ao passo que a mulher muçulmana está deixando de seguir um mandamento religioso”, diz a socióloga, que reafirma o livre arbítrio da mulher ao lembrar que a mãe, também muçulmana, não faz uso de véu.

Embora a burca (véu que recobre todo o corpo da mulher) tenha virado uma espécie de símbolo da vestimenta muçulmana, os tipos de véus variam de região para região (veja quadro acima), assim como a interpretação que cada uma dá ao Alcorão.

Muitos países que têm o islamismo como religião oficial também fazem uso da sharia, lei baseada em princípios do Alcorão, como parte da Constituição, aplicando um conjunto de regras e punições que podem ser interpretados de acordo com a vontade de cada país ou corte.

Leia também: Sharia, a lei islâmica, rege tudo na vida do muçulmano

É assim que, no ano passado, uma jornalista foi condenada a receber 50 chicotadas no Sudão por ter usado calças compridas em público e, na Malásia, uma modelo foi condenada a seis chicotadas por ter bebido cerveja.

Interpretação

De acordo com a professora Francirosy Campos, o que é recomendado pela religião é que as mulheres cubram a cabeça, braços e pernas e não usem roupas coladas ao corpo ou transparentes. Assim como homens são orientados a não se apresentar de bermuda diante de uma mulher ou usar objetos de ouro, por exemplo.

“O problema não é o véu, mas as interpretações que fazem a partir dele. O véu como atributo feminino é aceito”, diz a antropóloga, que enxerga ainda questões culturais e políticas no uso da vestimenta.

“São Paulo é um bom exemplo disso. Quando comecei a estudar a comunidade muçulmana aqui, havia uma pequena parcela de mulheres que usava véu, hoje tem um número maior. A comunidade se fortaleceu religiosamente.”

Para Nadia Hussein, a questão da vestimenta independe da cultura. “Eu sou brasileira, se fosse francesa, libanesa ou qualquer outra nacionalidade e seguisse os preceitos do Alcorão sagrado, o véu é parte das obrigações. “

'O Clone' e 11 de Setembro

A socióloga Magda Aref afirma ter percebido uma melhor aceitação nos últimos anos à vestimenta. “Alguns anos atrás, era muito maior o estranhamento. Hoje, quando você sai às ruas, já percebe a diferença. A novela ‘O Clone’ e os atentados de 11 de setembro de 2001 mostraram muitos os muçulmanos. Mulheres apareceram muito em reportagens. As pessoas viram que elas usam véu, mas também trabalham, estudam.”

Na opinião da antropóloga Francirosy Campos, é esta convivência com as diferenças religiosas que pode ser abalada com a possível aprovação de uma lei para barrar o uso da burca. “Quando se força uma comunidade a retirar aquele elemento que representa a sua identidade religiosa, você força esse mesmo grupo a criar um nó coletivo. Você fortalece esse grupo."

Amauri Arrais, G1 8 de março de 2010.

5 - Um filósofo fala sobre liberdade e ordem

Pessoal, seguem abaixo trechos de dois textos interessantes do filósofo Olavo de Carvalho sobre os conceitos de “liberdade” e de “propriedade” no liberalismo e de sua relação com a necessidade da “ordem”. Ambos saíram no Diário do Comércio e podem ser lidos integralmente no site http://www.olavodecarvalho.org.

Texto 1 – Liberdade e Ordem

Sei que magôo profundamente os sentimentos de meus amigos liberais ao afirmar que nenhuma filosofia política séria pode tomar como princípios fundantes as idéias de "liberdade" e "propriedade" – precisamente as mais queridas dos corações liberais. Mas, sinto muito, as coisas são mesmo assim.

Entendo por filosofia política séria aquela que não se constitui de meras justificativas idealísticas ou pragmáticas para ações que se inspiram, de fato, em razões de outra ordem, quer sejam estas ignoradas ou propositadamente escondidas pelo agente.

A missão da filosofia política não é dar uma aparência de racionalidade a opções e decisões pré-racionais. É dar inteligibilidade ao campo inteiro dos fenômenos políticos, possibilitando que ações e decisões tenham firme ancoragem na realidade dos fatos e na natureza das coisas. Para isso é estritamente necessário que seus próprios conceitos tenham inteligibilidade máxima, para que não se caia no erro de explicar obscurum per obscurius.

A liberdade, embora clara e nítida enquanto vivência subjetiva, não se deixa traduzir facilmente num conceito classificatório que se possa aplicar à variedade das situações de fato. A noção e a própria experiência da liberdade são de natureza essencialmente escalar e relativa. De um lado, é muito difícil dar um significado substantivo à noção de liberdade política sem ter esclarecido primeiro o da liberdade em sentido metafísico – uma questão das mais encrencadas. De que adianta defender a liberdade política de uma criatura à qual se nega, ao mesmo tempo, toda autonomia real? Se somos produtos do meio, de um condicionamento genético ou de um destino pré-estabelecido, é ridículo esperar que a mera promulgação de leis reverta a ordem dos fatores, assegurando-nos o direito de fazer aquilo que, de fato, não podemos fazer.

De outro lado, a “liberdade” é, com freqüência, nada mais que um adorno retórico usado para encobrir a vigência de algum princípio totalmente diverso. Quando, com a cara mais bisonha do mundo, o liberal proclama que “a liberdade de um termina onde começa a do outro”, ele está reconhecendo implicitamente – embora quase nunca o perceba – que essa liberdade é apenas a margem de manobra deixada ao cidadão dentro da rede de relações determinada por uma ordem jurídica estabelecida. O princípio aí fundante é, pois, o de “ordem”, não o de “liberdade”. Isso basta para demonstrar que a “liberdade” não é jamais um princípio, mas apenas a decorrência mais ou menos acidental da aplicação de um princípio totalmente diverso.

Compare-se, por exemplo, a noção de liberdade com a de “direito à vida”. Esta é um princípio universal que não admite exceções nem limitações de espécie alguma. Quando você mata em legítima defesa, ou para proteger uma vítima inerme, não está "limitando" a vigência do princípio, mas aplicando-o na sua mais plena extensão: a morte do agressor aparece aí como um acidente de facto, que em nada afeta o princípio, já que é imposto pelas circunstâncias em vista da defesa desse mesmo princípio. Nenhum raciocínio similar se pode fazer com relação à “liberdade”. Quando você limita a liberdade de um para preservar a de outro, o que aí está sendo aplicado não é o princípio da “liberdade”, mas o da “ordem” necessária à preservação de muitas liberdades relativas.

Do mesmo modo, não existe “propriedade absoluta”, de vez que a propriedade é essencialmente um direito, portanto uma obrigação imposta a terceiros. O mero poder de uso de uma coisa não é propriedade, é posse. A propriedade só surge na relação social fundada pela “ordem”. O mero fato de que existam propriedades legítimas e ilegítimas mostra que a propriedade é dependente da ordem, portanto não é um princípio em si. Só para fins de contraste, imaginem se pode existir um “direito à vida” meramente relativo. Esse direito é um princípio que está na base mesma da ordem, a qual se torna desordem no instante em que o nega ou relativiza. A própria ordem, nesse sentido, não é um princípio (ao contrário do que imaginam seus defensores tradicionalistas e reacionários). Se, na hierarquia dos conceitos, toda ordem se coloca acima da "liberdade", como garantia da possibilidade de haver liberdade em qualquer dose que seja, nem por isso a noção de "ordem absoluta" deixa de ser impensável.

O primeiro dever de uma filosofia política séria é depurar os seus conceitos de toda contradição intrínseca e de toda confusão categorial. Sem isso, qualquer diagnóstico de um estado de fato ou todo fundamento que se possa alegar para ações e decisões é apenas um sistema de pretextos retóricos destinado a enganar não só o público, mas o próprio agente. Infelizmente a maioria dos opinadores políticos, acadêmicos ou jornalísticos, está incapacitada para essas distinções, que lhes parecem demasiado abstratas e etéreas, quando, por uma fatalidade inerente à inteligência humana, nunca é possível apreender cognitivamente o fato concreto senão subindo no grau de abstração dos conceitos usados para descrevê-lo.

Olavo de Carvalho. Diário do Comércio, 15 de fevereiro de 2010

Texto II – Ainda a liberdade e a ordem

Meu artigo “Liberdade e ordem” suscitou na internet um vendaval de discussões que, se revelam uma saudável agitação de idéias, demonstram, na mesma medida, que muita confusão ainda prevalece entre os liberais e conservadores brasileiros quando tratam de acertar suas diferenças e buscar, ao menos em hipótese, uma estratégia comum.

As palavras “liberdade” e “ordem” são com freqüência usadas como slogans, denotando o apego dos grupos políticos aos valores que lhes são caros. Mas, como já ensinava Aristóteles, a ciência política começa com a distinção entre o discurso do agente que expressa uma vontade política e o do estudioso que descreve ou analisa um dado da realidade.

Em todo sistema político, a liberdade é sempre e exclusivamente a margem de manobra repartida entre os vários agentes dentro da ordem jurídica existente; que a ordem é a condição possibilitadora da liberdade, e não esta daquela, como se vê pelo simples fato de que pode existir uma ordem sem muita liberdade, mas nenhuma liberdade fora da ordem, exceto num hipotético e aliás autocontraditório “estado de natureza”. A ordem pode inspirar-se no desejo de ampliar a margem de liberdade até o máximo possível, mas não há por que confundir entre o ideal inspirador de uma construção e os elementos substantivos que a compõem. Por definição, a ordem, qualquer ordem, da mais libertária à mais autoritária, não é um sistema de franquias e sim de obrigações, restrições e controles. Simone Weil já observava, com razão, que cada direito assegurado a um cidadão nada mais é do que uma obrigação imposta a outros e fora disso é apenas um flatus vocis. Uma ordem liberal, ou mais ainda libertária, só pode ser concebida como um sistema complexo de controles idealmente recíprocos (checks and balances) destinado a limitar a liberdade de todos de modo que a de um não se sobreponha à dos outros: a liberdade do agente individual é a margem que sobra no fim de todas as subtrações de parte a parte. Que a noção é problemática e um tanto paradoxal, revela-o o fato de que o mesmo processo legisferante necessário à preservação das liberdades pode se tornar opressivo quando os direitos proclamados são muitos e os controles criados para a sua manutenção geram o crescimento ilimitado da burocracia judicial, policial e administrativa. Mas, afinal, nenhuma ordem é perfeita nos seus próprios termos. A ordem totalitária, oprimindo os de baixo, concede aos de cima uma liberdade ilimitada que desemboca no caos e na destruição mútua dos potentados.

Olavo de Carvalho. Diário do Comércio, 18 de março de 2010

quinta-feira, 11 de março de 2010

6 - Um historiador defende as cotas raciais

Pessoal, segue abaixo uma defesa da política de cotas raciais feita pelo historiador Luis Felipe de Alencastro. Tirei o texto do blog do jornalista Luiz Carlos Azenha (http://www.viomundo.com.br)

Parecer sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF/186, apresentada ao Supremo Tribunal Federal

Luiz Felipe de Alencastro

Cientista Político e Historiador

Professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris IV Sorbonne

No presente ano de 2010, os brasileiros afro-descendentes, os cidadãos que se auto-definem como pretos e pardos no recenseamento nacional, passam a formar a maioria da população do país. A partir de agora -, na conceituação consolidada em décadas de pesquisas e de análises metodológicas do IBGE -, mais da metade dos brasileiros são negros.

Esta mudança vai muito além da demografia. Ela traz ensinamentos sobre o nosso passado, sobre quem somos e de onde viemos, e traz também desafios para o nosso futuro.

Minha fala tentará juntar os dois aspectos do problema, partindo de um resumo histórico para chegar à atualidade e ao julgamento que nos ocupa. Os ensinamentos sobre nosso passado, referem-se à densa presença da população negra na formação do povo brasileiro. Todos nós sabemos que esta presença originou-se e desenvolveu-se na violência. Contudo, a extensão e o impacto do escravismo não tem sido suficientemente sublinhada. A petição inicial de ADPF apresentada pelo DEM a esta Corte fala genericamente sobre "o racismo e a opção pela escravidão negra" (pp. 37-40), sem considerar a especificidade do escravismo em nosso país.

Na realidade, nenhum país americano praticou a escravidão em tão larga escala como o Brasil. Do total de cerca de 11 milhões de africanos deportados e chegados vivos nas Américas, 44% (perto de 5 milhões) vieram para o território brasileiro num período de três séculos (1550-1856). O outro grande país escravista do continente, os Estados Unidos, praticou o tráfico negreiro por pouco mais de um século (entre 1675 e 1808) e recebeu uma proporção muito menor -, perto de 560.000 africanos -, ou seja, 5,5% do total do tráfico transatlântico.[1] No final das contas, o Brasil se apresenta como o agregado político americano que captou o maior número de africanos e que manteve durante mais tempo a escravidão.

Durante estes três séculos, vieram para este lado do Atlântico milhões de africanos que, em meio à miséria e ao sofrimento, tiveram coragem e esperança para constituir as famílias e as culturas formadoras de uma parte essencial do povo brasileiro. Arrancados para sempre de suas famílias, de sua aldeia, de seu continente, eles foram deportados por negreiros luso-brasileiros e, em seguida, por traficantes genuinamente brasileiros que os trouxeram acorrentados em navios arvorando o auriverde pendão de nossa terra, como narram estrofes menos lembradas do poema de Castro Alves.

No século XIX, o Império do Brasil aparece ainda como a única nação independente que praticava o tráfico negreiro em larga escala. Alvo da pressão diplomática e naval britânica, o comércio oceânico de africanos passou a ser proscrito por uma rede de tratados internacionais que a Inglaterra teceu no Atlântico. [2]

O tratado anglo-português de 1818 vetava o tráfico no norte do equador. Na sequência do tratado anglo-brasileiro de 1826, a lei de 7 de novembro de 1831, proibiu a totalidade do comércio atlântico de africanos no Brasil.

Entretanto, 50.000 africanos oriundos do norte do Equador são ilegalmente desembarcados entre 1818 e 1831, e 710.000 indivíduos, vindos de todas as partes da África, são trazidos entre 1831 e 1856, num circuito de tráfico clandestino. Ora, da mesma forma que o tratado de 1818, a lei de 1831 assegurava plena liberdade aos africanos introduzidos no país após a proibição. Em conseqüência, os alegados proprietários desses indivíduos livres eram considerados sequestradores, incorrendo nas sanções do artigo 179 do Código Criminal, de 1830, que punia o ato de "reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse de sua liberdade". A lei de 7 de novembro 1831 impunha aos infratores uma pena pecuniária e o reembolso das despesas com o reenvio do africano sequestrado para qualquer porto da África. Tais penalidades são reiteradas no artigo 4° da Lei de 4 de setembro de 1850, a lei Eusébio de Queirós que acabou definitivamente com o tráfico negreiro.

Porém, na década de 1850, o governo imperial anistiou, na prática, os senhores culpados do crime de sequestro, mas deixou livre curso ao crime correlato, a escravização de pessoas livres.[3]

De golpe, os 760.000 africanos desembarcados até 1856 -, e a totalidade de seus descendentes -, continuaram sendo mantidos ilegalmente na escravidão até 1888.[4]

Para que não estourassem rebeliões de escravos e de gente ilegalmente escravizada, para que a ilegalidade da posse de cada senhor, de cada sequestrador, não se transformasse em insegurança coletiva dos proprietários, de seus sócios e credores -, abalando todo o país -, era preciso que vigorasse um conluio geral, um pacto implícito em favor da violação da lei. Um pacto fundado nos "interesses coletivos da sociedade", como sentenciou, em 1854, o ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, pai de Joaquim Nabuco.

O tema subjaz aos debates da época. O próprio Joaquim Nabuco, que está sendo homenageado neste ano do centenário de sua morte, escrevia com todas as letras em “O Abolicionismo” (1883): “Durante cinquenta anos a grande maioria da propriedade escrava foi possuída ilegalmente. Nada seria mais difícil aos senhores, tomados coletivamente, do que justificar perante um tribunal escrupuloso a legalidade daquela propriedade, tomada também em massa".[5]

Tal "tribunal escrupuloso" jamais instaurou-se nas cortes judiciárias, nem tampouco na historiografia do país. Tirante as ações impetradas por um certo número de advogados e magistrados abolicionistas, o assunto permaneceu encoberto na época e foi praticamente ignorado pelas gerações seguintes.

Resta que este crime coletivo guarda um significado dramático: ao arrepio da lei, a maioria dos africanos cativados no Brasil a partir de 1818 -, e todos os seus descendentes -, foram mantidos na escravidão até 1888. Ou seja, boa parte das duas últimas gerações de indivíduos escravizados no Brasil não era escrava. Moralmente ilegítima, a escravidão do Império era ainda -, primeiro e sobretudo -, ilegal. Como escrevi, tenho para mim que este pacto dos sequestadores constitui o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira.[6]

Firmava-se duradouramente o princípio da impunidade e do casuísmo da lei que marca nossa história e permanece como um desafio constante aos tribunais e a esta Suprema Corte. Consequentemente, não são só os negros brasileiros que pagam o preço da herança escravista.

Outra deformidade gerada pelos "males que a escravidão criou", para retomar uma expressão de Joaquim Nabuco, refere-se à violência policial.

Para expor o assunto, volto ao século XIX, abordando um ponto da história do direito penal que os ministros desta Corte conhecem bem e que peço a permissão para relembrar.

Depois da Independência, no Brasil, como no sul dos Estados Unidos, o escravismo passou a ser consubstancial ao State building, à organização das instituições nacionais. Houve, assim, uma modernização do escravismo para adequá-lo ao direito positivo e às novas normas ocidentais que regulavam a propriedade privada e as liberdades públicas. Entre as múltiplas contradições engendradas por esta situação, uma relevava do Código Penal: como punir o escravo delinquente sem encarcerá-lo, sem privar o senhor do usufruto do trabalho do cativo que cumpria pena prisão?

Para solucionar o problema, o quadro legal foi definido em dois tempos. Primeiro, a Constituição de 1824 garantiu, em seu artigo 179, a extinção das punições físicas constantes nas aplicações penais portuguesas. "Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis"; a Constituição também prescrevia: "as cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes".

Conforme os princípios do Iluminismo, ficavam assim preservadas as liberdades e a dignidade dos homens livres.

Num segundo tempo, o Código Criminal de 1830 tratou especificamente da prisão dos escravos, os quais representavam uma forte proporção de habitantes do Império. No seu artigo 60, o Código reatualiza a pena de tortura. "Se o réu for escravo e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites, e depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz designar, o número de açoites será fixado na sentença e o escravo não poderá levar por dia mais de 50". Com o açoite, com a tortura, podia-se punir sem encarcerar: estava resolvido o dilema.

Longe de restringir-se ao campo, a escravidão também se arraigava nas cidades. Em 1850, o Rio de Janeiro contava 110.000 escravos entre seus 266.000 habitantes, reunindo a maior concentração urbana de escravos da época moderna. Neste quadro social, a questão da segurança pública e da criminalidade assumia um viés específico.[7] De maneira mais eficaz que a prisão, o terror, a ameaça do açoite em público, servia para intimidar os escravos.

Oficializada até o final do Império, esta prática punitiva estendeu-se às camadas desfavorecidas, aos negros em particular e aos pobres em geral. Junto com a privatização da justiça efetuada no campo pelos fazendeiros, tais procedimentos travaram o advento de uma política de segurança pública fundada nos princípios da liberdade individual e dos direitos humanos.

Enfim, uma terceira deformidade gerada pelo escravismo afeta diretamente o estatuto da cidadania.

É sabido que nas eleições censitárias de dois graus ocorrendo no Império, até a Lei Saraiva, de 1881, os analfabetos, incluindo negros e mulatos alforriados, podiam ser votantes, isto é, eleitores de primeiro grau, que elegiam eleitores de 2° grau (cerca de 20.000 homens em 1870), os quais podiam eleger e ser eleitos parlamentares. Depois de 1881, foram suprimidos os dois graus de eleitores e em 1882, o voto dos analfabetos foi vetado.

Decidida no contexto pré-abolicionista, a proibição buscava criar um ferrolho que barrasse o acesso do corpo eleitoral à maioria dos libertos. Gerou-se um estatuto de infracidadania que perdurou até 1985, quando foi autorizado o voto do analfabeto. O conjunto dos analfabetos brasileiros, brancos e negros, foi atingido.[8] Mas a exclusão política foi mais impactante na população negra, onde o analfabetismo registrava, e continua registrando, taxas proporcionalmente bem mais altas do que entre os brancos.[9]

Pelos motivos apontados acima, os ensinamentos do passado ajudam a situar o atual julgamento sobre cotas universitárias na perspectiva da construção da nação e do sistema político de nosso país. Nascidas no século XIX, a partir da impunidade garantida aos proprietários de indivíduos ilegalmente escravizados, da violência e das torturas infligidas aos escravos e da infracidadania reservada ao libertos, as arbitrariedades engendradas pelo escravismo submergiram o país inteiro.

Por isso, agindo em sentido inverso, a redução das discriminações que ainda pesam sobre os afrobrasileiros, hoje majoritários no seio da população, consolidará nossa democracia.

Portanto, não se trata aqui de uma simples lógica indenizatória, destinada a quitar dívidas da história e a garantir direitos usurpados de uma comunidade específica, como foi o caso, em boa medida, nos memoráveis julgamentos desta Corte sobre a demarcação das terras indígenas. No presente julgamento, trata-se, sobretudo, de inscrever a discussão sobre a política afirmativa no aperfeiçoamento da democracia, no vir a ser da nação. Tais são os desafios que as cotas raciais universitárias colocam ao nosso presente e ao nosso futuro.

Atacando as cotas universitárias, a ADPF do DEM, traz no seu ponto 3 o seguinte título "o perigo da importação de modelos: os exemplos de Ruanda e dos Estados Unidos da América " (pps. 41-43). Trata-se de uma comparação absurda no primeiro caso e inepta no segundo.

Qual o paralelo entre o Brasil e Ruanda, que alcançou a independência apenas em 1962 e viu-se envolvido, desde 1990, numa conflagração generalizada que os especialistas denominam a "primeira guerra mundial africana", implicando também o Burundi, Uganda, Angola, o Congo Kinshasa e o Zimbábue, e que culminou, em 1994, com o genocídio de quase 1 milhão de tutsis e milhares de hutus ruandenses?

Na comparação com os Estados Unidos, a alegação é inepta por duas razões. Primeiro, os Estados Unidos são a mais antiga democracia do mundo e servem de exemplo a instituições que consolidaram o sistema político no Brasil. Nosso federalismo, nosso STF -, vosso STF – são calcados no modelo americano.

Não há nada de "perigoso" na importação de práticas americanas que possam reforçar nossa democracia. A segunda razão da inépcia reside no fato de que o movimento negro e a defesa dos direitos dos ex-escravos e afrodescendentes tem, como ficou dito acima, raízes profundas na história nacional. Desde o século XIX, magistrados e advogados brancos e negros tem tido um papel fundamental nestas reinvidicações.

Assim, ao contrário do que se tem dito e escrito, a discussão relançada nos anos 1970-1980 sobre as desigualdades raciais é muito mais o resultado da atualização das estatísticas sociais brasileiras, num contexto de lutas democráticas contra a ditadura, do que uma propalada "americanização" do debate sobre a discriminação racial em nosso país. Aliás, foram estas mesmas circunstâncias que suscitaram, na mesma época, os questionamentos sobre a distribuição da renda no quadro do alegado "milagre econômico". Havia, até a realização da primeira PNAD incluindo o critério cor, em 1976, um grande desconhecimento sobre a evolução demográfica e social dos afrodescendentes.

De fato, no Censo de 1950, as estatísticas sobre cor eram limitadas, no Censo de 1960, elas ficaram inutilizadas e no Censo de 1970 elas eram inexistentes. Este longo período de eclipse estatística facilitou a difusão da ideologia da "democracia racial brasileira", que apregoava de inexistência de discriminação racial no país. Todavia, as PNADs de 1976, 1984, 1987, 1995, 1999 e os Censos de 1980, 1991 e 2000, incluíram o critério cor. Constatou-se, então, que no decurso de três décadas, a desigualdade racial permanecia no quadro de uma sociedade mais urbanizada, mais educada e com muito maior renda do que em 1940 e 1950. Ou seja, ficava provado que a desigualdade racial tinha um caráter estrutural que não se reduzia com progresso econômico e social do país. Daí o adensamento das reivindicações da comunidade negra, apoiadas por vários partidos políticos e por boa parte dos movimentos sociais.

Nesta perspectiva, cabe lembrar que a democracia, a prática democrática, consiste num processo dinâmico, reformado e completado ao longo das décadas pelos legisladores brasileiros, em resposta às aspirações da sociedade e às iniciativas de países pioneiros. Foi somente em 1932, ainda assim com as conhecidas restrições suprimidas em 1946, que o voto feminino instaurou-se no Brasil. Na época, os setores tradicionalistas alegaram que a capacitação política das mulheres iria dividir as famílias e perturbar a tranquilidade de nação. Pouco a pouco, normas consensuais que impediam a plena cidadania e a realização profissional das mulheres foram sendo reduzidas, segundo o preceito, aplicável também na questão racial, de que se deve tratar de maneira desigual o problema gerado por uma situação desigual.

Para além do caso da política de cotas da UNB, o que está em pauta neste julgamento são, a meu ver, duas questões essenciais.

A primeira é a seguinte: malgrado a inexistência de um quadro legal discriminatório a população afrobrasileira é discriminada nos dias de hoje?

A resposta está retratada nas creches, nas ruas, nas escolas, nas universidades, nas cadeias, nos laudos dos IML de todo o Brasil. Não me cabe aqui entrar na análise de estatísticas raciais, sociais e econômicas que serão abordadas por diversos especialistas no âmbito desta Audiência Pública. Observo, entretanto, que a ADPF apresentada pelo DEM, na parte intitulada "A manipulação dos indicadores sociais envolvendo a raça" (pp. 54-59), alinha algumas cifras e cita como única fonte analítica, o livro do jornalista Ali Kamel, o qual, como é sabido, não é versado no estudo das estatísticas do IBGE, do IPEA, da ONU e das incontáveis pesquisas e teses brasileiras e estrangeiras que demonstram, maciçamente, a existência de discriminação racial no Brasil.

Dai decorre a segunda pergunta que pode ser formulada em dois tempos. O sistema de promoção social posto em prática desde o final da escravidão poderá eliminar as desigualdades que cercam os afrobrasileiros? A expansão do sistema de bolsas e de cotas pelo critério social provocará uma redução destas desigualdades?

Os dados das PNAD organizados pelo IPEA mostram, ao contrário, que as disparidades se mantém ao longo da última década. Mais ainda, a entrada no ensino superior exacerba a desigualdade racial no Brasil.Dessa forma, no ensino fundamental (de 7 a 14 anos), a diferença entre brancos e negros começou a diminuir a partir de 1999 e em 2008 a taxa de frequência entre os dois grupos é praticamente a mesma, em torno de 95% e 94% respectivamente.

No ensino médio (de 15 a 17 anos) há uma diferença quase constante desde entre 1992 e 2008. Neste último ano, foram registrados 61,0% de alunos brancos e 42,0% de alunos negros desta mesma faixa etária.

Porém, no ensino superior a diferença entre os dois grupos se escancara. Em 2008, nas faixas etárias de brancos maiores de 18 anos de idade, havia 20,5% de estudantes universitários e nas faixas etárias de negros maiores de 18 anos, só 7,7% de estudantes universitários.[10] Patenteia-se que o acesso ao ensino superior constitui um gargalo incontornável para a ascensão social dos negros brasileiros.

Por todas estas razões, reafirmo minha adesão ao sistema de cotas raciais aplicado pela Universidade de Brasília.

Penso que seria uma simplificação apresentar a discussão sobre as cotas raciais como um corte entre a esquerda e a direita, o governo e a oposição ou o PT e o PSDB. Como no caso do plebiscito de 1993, sobre o presidencialismo e o parlamentarismo, a clivagem atravessa as linhas partidárias e ideológicas. Aliás, as primeiras medidas de política afirmativa relativas à população negra foram tomadas, como é conhecido, pelo governo Fernando Henrique Cardoso.

Como deixei claro, utilizei vários estudos do IPEA para embasar meus argumentos. Ora, tanto o presidente do IPEA no segundo governo Fernando Henrique Cardoso, o professor Roberto Borges Martins, como o presidente do IPEA no segundo governo Lula, o professor Márcio Porchman, colegas por quem tenho respeito e admiração, coordenaram vários estudos sobre a discriminação racial no Brasil nos dias de hoje e são ambos favoráveis às políticas afirmativas e às políticas de cotas raciais.

A existência de alianças transversais deve nos conduzir, mesmo num ano de eleições, a um debate menos ideologizado, onde os argumentos de uns e de outros possam ser analisados a fim de contribuir para a superação da desigualdade racial que pesa sobre os negros e a democracia brasileira.

[1].Ver o Database da Universidade de Harvard acessível no sítio http://www.slavevoyages.org/tast/index.faces

[2]. Demonstrando um grande desconhecimento da história pátria e supercialidade em sua argumentação, a petição do DEM afirma na página 35: “Por que não direcionamos a Portugal e à Inglaterra a indenização a ser devida aos afrodescendentes, já que foram os portugueses e os ingleses quem organizaram o tráfico de escravos e a escravidão no Brasil?”. Como é amplamente conhecido, os ingleses não tiveram participação no escravismo brasileiro, visto que o tráfico negreiro constituía-se como um monopólio português, com ativa participação brasileira no século XIX. Bem ao contrário, por razões que não cabe desenvolver neste texto, a Inglaterra teve um papel decisivo na extinção do tráfico negreiro para o Brasil

[3]. A. Perdigão Malheiro, A Escravidão no Brasil – Ensaio Histórico, Jurídico, Social (1867), Vozes, Petrópolis, R.J., 1976, 2 vols. , v. 1, pp. 201-222. Numa mensagem confidencial ao presidente da província de São Paulo, em 1854, Nabuco de Araújo, ministro da Justiça, invoca “os interesses coletivos da sociedade”, para não aplicar a lei de 1831, prevendo a liberdade dos africanos introduzidos após esta data, Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império (1897-1899), Topbooks, Rio de Janeiro, 1997, 2 vols., v. 1, p. 229, n. 6

[4] . Beatriz G. Mamigonian, comunicação no seminário do Centre d’Études du Brésil et de l’Atlantique Sud, Université de Paris IV Sorbonne, 21/11/2006; D.Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade, Oxford University Press, Oxford, U.K. 1989, appendix A, pp. 234-244.

[5] . Joaquim Nabuco, O Abolicionismo (1883), ed. Vozes, Petrópolis, R.J., 1977, pp 115-120, 189. Quinze anos depois, confirmando a importância primordial do tráfico de africanos -, e da na reprodução desterritorializada da produção escravista -, Nabuco afirma que foi mais fácil abolir a escravidão em 1888, do que fazer cumprir a lei de 1831, id., Um Estadista do Império (1897-1899), Rio de Janeiro, Topbooks,1997, 2 vols., v. 1, p. 228.

[6] . L.F. de Alencastro, “A desmemória e o recalque do crime na política brasileira”, in Adauto Novaes, O Esquecimento da Política, Agir Editora, Rio de Janeiro, 2007, pp. 321-334.

[7] . Luiz Felipe de Alencastro, “Proletários e Escravos: imigrantes portugueses e cativos africanos no Rio de Janeiro 1850-1870”, in Novos Estudos Cebrap, n. 21, 1988, pp. 30-56;

[8] . Elza Berquó e L.F. de Alencastro, “A Emergência do Voto Negro”, Novos Estudos Cebrap, São Paulo, nº33, 1992, pp.77-88.

[9] . O censo de 1980 mostrava que o índice de indivíduos maiores de cinco anos “sem instrução ou com menos de 1 ano de instrução” era de 47,3% entre os pretos, 47,6% entre os pardos e 25,1% entre os brancos. A desproporção reduziu-se em seguida, mas não tem se modificado nos últimos 20 anos. Segundo as PNADs, em 1992, verificava-se que na população maior de 15 anos, os brancos analfabetos representavam 4,0 % e os negros 6,1 %, em 2008 as taxas eram, respectivamente de 6,5% e 8,3%. O aumento das taxas de analfabetos provém, em boa parte, do fato que a partir de 2004, as PNADs passa a incorporar a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas,Roraima, Pará e Amapá. Dados extraídos das tabelas do IPEA.

[10] . Dados fornecidos pelo pesquisador do IPEA, Mario Lisboa Theodoro, que também participa desta Audiência Pública.

terça-feira, 9 de março de 2010

7 - Defesa das cotas raciais

Publiquei nas postagens 11 e 12 resenhas de livros contrários à política de cotas raciais. Na postagem 8 está reproduzido um debate sobre essa política. Na página da Fundação Palmares você encontrará uma série de textos defendendo as cotas raciais. Clique no link http://www.palmares.gov.br/ e depois em Artigos.

8 - Debate: cotas raciais

Cotas raciais e racismo

O jornal O Estado de São Paulo ( 3 de junho de 2007) publicou um debate entre Demétrio Magnoli e Hélio Santos sobre a política de cotas raciais, reproduzido abaixo. Não deixem de ler.

Especialistas divergem sobre causas da desigualdade no País

Debate no Estado opõe defensor e adversário de políticas de cotas para negros em instituições públicasVeja o debate

Roldão Arruda

Na opinião de dois importantes estudiosos de questões sociais e políticas, o Congresso poderá alterar substancialmente os rumos da história do Brasil quando votar os projetos de lei que já estão nas mãos dos parlamentares, definindo cotas para negros nas universidades públicas federais e outras instituições do serviço público. Os dois discordam, porém, quanto aos efeitos dessas leis.Na opinião do geógrafo Demétrio Magnoli, da USP, será um passo atrás na história de um país que vem construindo sua imagem na base da miscigenação, sem recorrer a conceitos raciais ultrapassados. Ele afirma até que será uma abertura para uma guerra civil no futuro. Para o administrador de empresas Hélio Santos, um dos mais respeitados estudiosos da questão racial no País, a aprovação dos projetos será um avanço. Ela acredita que isso permitirá exorcizar três seculos e meio de escravidão.Magnoli e Santos estiveram na redação do Estado, na quinta-feira, para um debate sobre o tema, denominado Desigualdades no Brasil: Desigualdades Sociais ou Raciais? O encontro, marcado pelo tom da polêmica, durou 1 hora e 20minutos e foi transmitido ao vivo pelo site Estadão.com, com a participação de internautas, que podiam fazer perguntas e participar da enquete sobre cotas. A seguir, alguns dos principais pontos do debate:

DEMÉTRIO MAGNOLI - Em relação ao tema proposto para esse debate, diria que as raízes das desigualdades no Brasil são sociais. O Brasil é um país de desigualdades sociais profundas, produto de uma certa formação da sociedade, de uma certa forma de distribuição da terra ao longo da história e de um certo padrão de modernização da economia - um padrão excludente. Não é, obviamente, questão racial. Se olharmos para o Norte e o Nordeste, vamos ver que os 50% mais pobres da população são pardos na sua imensa maioria; e que os 10% mais ricos são pardos. Se olharmos para o Sul e o Sudeste, veremos que os 10% mais ricos são brancos; e que os 50% mais pobres são predominantemente brancos.O Brasil tem profundas desigualdades sociais, que são também desigualdades regionais. É preciso não confundir essas desigualdades com desigualdes raciais. Se fizermos isso, logo paramos de discutir temas como educação pública para todos, saúde de qualidade para todos, direitos sociais para todos, e começamos a dividir o Brasil em raças, em nações dentro da nação.

HÉLIO SANTOS - O que está em jogo é a definição de que tipo de modernização o País quer. O professor Magnoli se referiu ao processo histórico, mas poderia ter lembrado também que a escravidão durou 354 anos. Falou da distribuição da terra, o que é perfeito, mas faltou lembrar que os imigrantes chegaram ao Brasil e receberam terra, enquanto a população negra foi impedida de ter terra. Falou da diferença entre regiões, mas seria bom lembrar que para onde o imigrante foi o dinheiro foi junto. As províncias de Santa Catarina e do Paraná investiram muito na política de imigração.Todo esse processo histórico já foi avaliado do ponto de vista acadêmico. Nos anos 60, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Oraci Nogueira, todos liderados por Florestan Fernandes, discutiram isso brilhantemente. Nos anos 70, Nelson do Vale Silva calculou, de maneira sofisticada, o preço que um engenheiro paga por ser negro no Rio de Janeiro, Porto Alegre, onde você quiser. Numa linguagem pouco acadêmica, diria que já existe uma jamanta de estudos sobre o tema.A essa altura, portanto, esse debate já deixou de ser acadêmico. Trata-se de um debate político. O discurso usado pela mídia para combater nossas propostas é muito parecido com os argumentos dos quem era contra a escravidão. Eles também diziam que o Brasil seria dividido.

MAGNOLI - Não é verdade que o debate acadêmico esteja resolvido. Tanto assim que as explicações dadas pelo professor Hélio sobre a história do Brasil são falsas. Não é verdade que os imigrantes chegaram ao Brasil e foram tratados a pão-de-ló. Os imigrantes que vieram para São Paulo e se tornaram brasileiros (eles não são estrangeiros entre nós) criaram sindicatos livres, fizeram greves para reivindicar direitos e obter conquistas sociais. Esses imigrantes, como tantos outros trabalhadores, de todas as cores, fazem parte de uma classe social que foi excluída no momento da modernização do Brasil.Isso não aparece no discurso do professor Hélio porque o discurso racialista, que deseja dividir o Brasil em raças, imagina que a história resulta da contraposição de raças e não de sistemas sociais e econômicos. Mas acontece que, no momento em que os trabalhadores desaparecem da conversa, assim como as classes sociais e os sistemas econômicos, entramos no campo de falsificação histórica. É falsificação imaginar que a escravidão foi imposição de um sistema de dominação de brancos sobre negros. Não foi. A escravidão no Brasil foi um sistema “democrático”: todos podiam ter seus escravos. Grandes traficantes de escravos baseados no Rio eram mulatos.

SANTOS - Isso é irrelevante.

MAGNOLI - Não é. Quando a ministra da Igualdade Racial diz que o ódio de negros contra brancos é algo que compreende e acha razoável, está dizendo que os brancos de hoje representam os donos de escravos de ontem, que os negros representam os escravos, o que é falso. Há brancos cujos ancestrais foram escravos; e há negros cujos ancestrais foram donos de escravos. Isso sim está resolvido. Porque a discussão sobre a cor da pele é cientificamente falsa - a genética já mostrou que não existem raças entre os seres humanos - e socialmente falsificadora. Em vez de falarmos sobre os interesses da maioria da população, que são trabalhadores de todas as cores, vamos cuidar dos interesses de raças. Isso é transformar o Brasil numa Iugoslávia, onde a população está dividida em sérvios, croatas, muçulmanos; numa Ruanda, onde as pessoas foram divididas em tutsis e iutus; numa África do Sul, onde o poder branco do apartheid criou raças entre a maioria negra.

SANTOS - Você e seus parceiros falam no perigo das divisões. Mas, na minha opinião, mais perigosas do isso são as exclusões. Há pouco tempo um empresário do sul, bem branco, contou que teve que afastar uma de suas funcionárias, responsável pelo recrutamente de meninas que trabalhavam como digitadoras. Ele fez isso depois de constatar que tinha 30 funcionárias e nenhuma era negra. Ou seja: as cotas de 100% para os brancos estão aí desde sempre e ninguém contesta.O Brasil, portanto, já está bem dividido. As políticas de ação afirmativa buscam recuperar prejuízos históricos, que podem ser calculados em real ou dólar. Todos os estudos, não importa qual seja o instituto de pesquisa, identificam muito bem os pretos e os pardos situados em posições muito abaixo da população branca; todos mostram que negros trabalhando na mesma região e com a mesma escolaridade percebem menos que os brancos. Quanto ao fato de os negros terem sido escravizados com a ajuda de outros negros, insisto: é irrelevante. Na história, todos os povos escravizaram a si próprios. O problema real é outro. Enquanto o negro era objeto de pesquisas, para os acadêmicos estava ótimo. Deixou de ser assim quando disse: também quero estar nessa universidade, construí este país por 354 anos e quero minha parte, quero mostrar que tenho talento não só no futebol.Nossos jogadores de futebol são elogiados no mundo inteiro. Por quê? Porque é a única área dessa sociedade onde não há discriminação. Ali, o branco que tiver talento vai em frente. E o negro, também. E ninguém aqui há de confundir futebol com algo que não requer inteligência. Para jogar tem que ter criatividade, senso de antecipação, velocidade de raciocínio... Quem joga bola pode pilotar Boeing, ser chefe de redação.

MAGNOLI - É preciso desconhecer o Brasil para afirmar que os negros são os pobres e os brancos, os ricos. É preciso não ter ido a uma favela, não ter andado de ônibus às seis da tarde, nem visitado escolas públicas para não perceber que o Brasil não é os Estados Unidos, de onde se importa a política de cotas.

SANTOS - É pior.

MAGNOLI - Nos Estados Unidos, negros e brancos estão de fatos separados, geograficamente, em áreas diferentes da cidade, pelos casamentos, que raramente são interraciais, pelas faixas de renda. No Brasil não é assim. No Brasil, pessoas de todas as cores de pele estão juntas, nas favelas, nas escolas. Elas não sabem dizer qual é sua raça: 2/5 dos brasileiros se declaram pardos, o que é vantagem, indica que conseguimos definir nossa identidade sem uma referência racial.A proposta que estão apresentando é reacionária. É a proposta da política do sangue, da ancestralidade. O Hélio Santos é uma pessoa democrática, mas precisamos dar nome às coisas: a política do sangue é fascista. É no facismo que as pessoas se definem pelos seus ancestrais, pela história. Na democracia, as pessoas têm direitos políticos iguais, almejam direitos econômicos iguais e se definem por suas potencialidades futuras - não pela ancestralidade.No Brasil, a política da ancestralidade é, além de tudo, uma política de fantasia, porque se trata de obrigar os brasileiros a fazer o que não fazem - que é definir sua raça. Essa política, profundamente retrógrada, tem a possibilidade, em décadas, de implantar o que não existe entre nós, o ódio racial de massas.É o contrário da modernidade. Vamos ter que dizer a crianças de uma escola pública, que vieram de famílias de um mesmo nível de renda, que uma parte delas vai ter direito às cotas e a outra, não. Mas todas continuarão estudando na mesma escola arruinada, porque essa discussão, sobre a qualidade dos serviços públicos, a qualidade da educação pública não interessa aos promoteres de políticas de cotas raciais. Eles não acreditam na universalidade. Acreditam em raça.

SANTOS - O doutor Magnoli tem razão quando diz que o Brasil nunca teve raças. Mas sempre teve cor. Todo mundo fala em cor. A questão é o fenótipo. Gostaria de lembrar que a polícia do Rio de Janeiro, na época do Esquadrão da Morte, matou mais negros que a polícia da África do Sul.No Brasil não existe, de fato, ódio racial explícito. O que temos aqui é uma sofisticação. A miscigenação, uma realidade e um artigo intangível e importante da nossa terra, está muito presente no discurso dos antropólogos, mas no dia a dia não é assim. Os estudos evidenciam que aqui se paga um bom preço por não ser branco.O mundo corporativo já percebeu isso. A Febraban hoje desenvolve políticas de ação afirmativa. Todos os sindicatos de empregados, as centrais sindicais, como CUT, CGT, Força Sindical, também não acreditam nessa história de miscigenação do professor Magnoli e seus pareceiros. No País, 31 universidades já adotam políticas de cotas. A Escola Paulista de Medicina tem a melhor escola de medicina da América Latina e não está nem um pouco insatisfeita com o sistema.Isso não é novidade. O Brasil já teve políticas de cotas nos anos 30. Pela Lei dos 2/3, toda empresa tinha que fazer uma relação anual mostrando para o Estado que de cada três empregados contratados, dois eram brasileiros. Foi a forma que o governo encontrou para proteger o trabalhador nacional, numa época, que se estendeu pelos anos 40 e 50, em que a população mais qualificada era estrangeira. Isso prosseguiu até os anos 60.

MAGNOLI - É impressionante como se falsifica a história nessa discussão. Na verdade, quando Getúlio Vargas instaurou cotas de trabalho nacional e imigrante, nos anos 30, visava a destruir o movimento sindical e operário que nas décadas de 10 e 20 se organizou para reivindicar salários e melhores condições de trabalho. Não foram cotas a favor do trabalhador nacional, mas do trabalhador desorganizado, não sindicalizado.

SANTOS - Eram cotas.

MAGNOLI - A política de Vargas, ao destruir os sindicatos livres, copiava as políticas de Benito Mussolini na Itália fascista.O professor Hélio fala a verdade ao afirmar que a polícia é especialmente repressiva, cruel e discriminatória com as pessoas de pele mais escura. Quando o Caveirão sobe os morros do Rio, ele discrimina as pessoas de pele escura.Ora, a pergunta que as pessoas devem fazer diante disso é: como responder ao racismo entranhado em algumas instituições do País, mas não na população? Será que a resposta é classificar as pessoas segundo sua raça? Obrigar os 2/5 de brasileiros que não se definem nem como brancos nem como pretos a serem negros ou afrodescendentes? Será que devemos produzir uma fantasia, dizendo que pretos e pardos são afrodescendentes e os demais são eurodescendentes? Essa é uma mentira genética, porque 90% dos brasileiros tem importante afrodescendência.

SANTOS - Insisto: no Brasil o que importa é o fenótipo. No mercado de trabalho, não adianta nada eu dizer que geneticamente tenho 60% de ancestralidade européia. O que importa é o que as pessoas estão vendo.O que o Magnoli propõe é a invisibilidade. É como se dissesse: não se identifiquem. Mas a medicina ensina que não se cura sem um diagnóstico. Vocês sabem por que estamos tendo políticas públicas mais adequadas no Brasil, em áreas como saúde e segurança? Porque desde 1995, quando coordenei um grupo criado pelo governo Fernando Henrique para discutir políticas públicas, passou-se a identificar a etnia das pessoas no atestado de óbito. Foi possível saber então que o que mais matava os jovens negros eram tiros.A identificação não tem cunho facista. Muito pelo contrário. Todos os estudos estatísticos já mostram onde a população negra está: ela é maioria na cadeia, não consegue os melhores empregos.Ainda de volta à miscigenação, vale lembrar que ela começa em 1500: os marujos chegam, sem mulheres, vêem as índias seminuas e, nove meses depois, nasce o primeiro brasileiro, um caboclo, mestiço. São cinco séculos de miscigenação, mas uma miscigenação que não é integradora.Já nos anos 90 o professor Danilo Pena mostrou que nós, negros, temos sangue branco, temos sangue indígena. E daí? Importa o fenótipo. Veja-se o caso dos gêmeos univitelinos, que teve tanto destaque no Jornal Nacional, porque um foi aceito no sistema de cotas e o outro, recusado. O que importa ali é que os dois são afrodescendentes e serão discriminados no mercado de trabalho. Pelo que eu vi na TV, o pai é negro e a mãe cabocla.Se houve erro na identificação, digo que é um preço barato diante do que tem feito a UnB, uma das melhores universidades do País. Nos anos 90, quando eu andava pelo campus daquela escola, só via uma população branca. Hoje, ela ficou melhor até do ponto de vista estético: é possível avistar pretos e pardos em quantidade.

MAGNOLI - É curioso. Primeiro o professor Hélio Santos concorda que não existem raças; e depois se coloca como um juiz de raças, definindo o que são gêmeos univitelinos e assegurando que são afrodescendentes. Ora os gêmeos são brasileiros, resultado de 500 anos de miscigenação.O que acontece hoje na UnB é algo gravíssimo. Os alunos são selecionados para as cotas por meio de fotografias, num sistema de cotas que já foi chamado, com razão, de tribunal racial. É um processo nazista e precisa ser impedido, de acordo com as leis contra o racismo existentes no Brasil.A UnB é um campo de provas do racialismo. Ali as pessoas se definem pela raça desde a chegada e aprendem que a raça é o alfa e o ômega da vida política e social. O que se propõe agora é transformar o Brasil numa imensa UnB, num lugar onde cada uma terá sua carteira de identidade racial, onde a identidade não é mais definida pelo lugar da pessoa na política, na sociedade, no trabalho, mas pela cor da pele. O perigo é transformar o Brasil num país dividido entre grupos de cor da pele.É fundamental combater o racismo da polícia, mas não se faz isso classificando as pessoas. Se faz com corregedorias, campanhas de opinião pública, criminalização do racismo.

SANTOS - Sobre a fotografia usada para as inscrições da UnB, quero lembrar que os profissionais mais antigos da área de recursos humanos conhecem o Código 4, que aparecia nas folhas de recrutamento e seleção de pessoal. Ele indicava que o candidato era negro. Não significava necessariamente que seria discriminado, mas era um argumento.Também sabemos que a fotografia serviu durante muito tempo para impedir a participação do negro no mercado de trabalho. É ótimo que sirva agora para permitir essa seleção.A Constituição do Brasil tem vários tópicos favoráveis à criação políticas públicas de ação afirmativa. Estamos tentando fazer o que a República não foi capaz de fazer em 118 anos.A República é um fracasso. As políticas universalistas não dão certo porque um número imenso de negros se beneficiaria delas. Quando se diz que há negros e há brancos nas favelas, é verdade: cerca de 30% de brancos padecem porque estão juntos com a imensidão de negros.

MAGNOLI - Deveriam estar separados?

SANTOS - Quando o Magnoli e seus parceiros dizem que as escolas públicas devem ser recuperadas, para que seus alunos tenham condições de chegar à universidade, estão sendo falaciosos. Não tem sido assim. Essa escola não vai para a frente porque educadores, pessoas como eu e o Magnoli, não colocamos nossos filhos nelas. O secretário de educação também não. Mas ele coloca na universidade pública, que é uma das poucas políticas universalistas do Estado que a elite brasileira ainda procura. Nem segurança pública ela utiliza mais. Prefere a privada.

MAGNOLI - No Brasil, política afirmativa virou sinômino de cota racial. Na verdade, ela deveria servir para reduzir as discriminações e desigualdades sociais que dividem os brasileiros. Se nós investirmos nas escolas públicas, principalmente nas escolas da periferias, dos bairros pobres, das favelas, nós estamos beneficiando principalmente os pobres e as pessoas de pele escura, porque é verdade: existe mais pobreza entre pretos e pardos.Se seguirmos o caminho da política racial, podemos estar preparando o caminho para a guerra civil no futuro.

SANTOS - O que propomos são ações afirmativas com foco na etnia. No Brasil, uma sociedade patriarcal, qualquer homem sabe da vantagem que tem em relação à mulher. Da mesma maneira, qualquer branco, levemente atento, sabe das vantagens que tem em relação ao negro em qualquer contexto de disputa em uma empresa.

MAGNOLI - Existem outros tipos de discriminação no mundo corporativo. Gordos e baixos também sofrem.SANTOS - A polícia não mata mais os gordos e os baixos.

MAGNOLI - Judeus são discriminados, mas não estamos propondo cotas para eles.

SANTOS - Veja as propagandas, a televisão, o ambiente das empresas, de qualquer porte. Em determinados contextos só existem brancos, mesmo em áreas de até dois salários mínimos.

MAGNOLI - Não há dúvida de que no Brasil as pessoas de pele mais escura têm prejuízos concretos na sua vida escolar, acadêmica e profissional, em função do racismo. Isso tem que ser combatido. É importante que o Brasil mostre para o mundo que é um país de miscigenação - um país que não é uma democracia racial, mas quer ser. O que eu discordo é dessa proposta de classificar cada um dos brasileiros de acordo com a cor da pele, definir raças e direitos diferentes.

SANTOS - Os projetos de leis de cotas e do Estatuto da Igualdade Racial, que já foram aprovados em todas as instâncias do Congresso, visam a exorcizar três séculos e meio de escravismo. Não exorcizar esse estigma é insanidade em estado puro.

O Estado de São Paulo, 3 de junho de 2007.

segunda-feira, 8 de março de 2010

9 - Livro: O Que Deu Errado no Oriente Médio?

Pessoal, mais uma dica de livro: O Que Deu Errado no Oriente Médio? de Bernard Lewis. O comentário abaixo é de Marcelo Musa Cavallari e saiu na revista Época (27 de julho de 2002):

As raízes de um fracasso

O mundo árabe, vanguarda da cultura no passado, entra no século XXI como a região menos desenvolvida do planeta

Até o fim da Idade Média, a civilização islâmica esteve na vanguarda do progresso humano. Os maiores filósofos, matemáticos, médicos e astrônomos falavam árabe ou persa. O mundo muçulmano era mais rico e mais poderoso que o Ocidente, visto no Oriente Médio como uma região sombria, habitada por bárbaros ignorantes. Hoje os países árabes, com poucas exceções, estão entre os mais pobres e atrasados do planeta. No resto do mundo, sua imagem está associada à opressão das mulheres, ao marasmo econômico, à distribuição iníqua dos lucros do petróleo, a ditaduras sangrentas, à revolta impotente dos palestinos sob a ocupação israelense e, sobretudo a partir dos atentados de 11 de setembro, ao terrorismo ensandecido.

O que deu errado no Oriente Médio? Essa pergunta é, simultaneamente, o título de um livro de Bernard Lewis, um dos mais respeitados historiadores dos povos muçulmanos, recém-lançado no Brasil (Jorge Zahar Editor, 204 páginas, R$ 24), e o tema de uma pesquisa das Nações Unidas divulgada no início do mês. Numa iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), um grupo de estudiosos debruçou-se sobre o estado atual do mundo árabe em busca de um diagnóstico de seus problemas. As conclusões são desalentadoras. O estudo abarca as 22 nações que integram a Liga Árabe – exclui, portanto, os Estados muçulmanos não-árabes, como o Irã, a Turquia, o Paquistão e a Indonésia. Os países árabes, unidos pelo mesmo idioma, somam 280 milhões de habitantes, um pouco mais que os Estados Unidos. O PIB de todos eles juntos é de US$ 531 bilhões, menor que o da Espanha, com uma população de 40 milhões. A estagnação econômica árabe só perde para a da África Subsaariana, a região mais pobre do mundo. Nos últimos 20 anos os países árabes cresceram a uma média anual de 0,5%. A riqueza gerada pelo petróleo trouxe poucos benefícios, pois é aplicada nos mercados da Europa, dos Estados Unidos e do Japão. Para os países árabes, com a população mais jovem do mundo – um efeito dos altíssimos índices de natalidade –, esse atraso é sinônimo de desemprego, cerca de 15% na média da região. O descontentamento dessa juventude sem perspectiva fica evidente na pesquisa. Entre os entrevistados, metade dos adultos com menos de 25 anos disse que seu maior desejo é emigrar.

Os países árabes são um caso exemplar da insuficiência dos indicadores puramente econômicos para retratar a situação de uma população. Desde a década de 90 o Pnud trabalha com o Índice de Desenvolvimento Humano. Combinando expectativa de vida, taxa de analfabetismo, matrículas nas escolas de primeiro, segundo e terceiro grau e PIB per capita, chega-se a uma nota de IDH. Por esse critério, os países árabes têm o pior desempenho do mundo todo, atrás de lugares mais pobres, como o sul da Ásia e a África Subsaariana. 'A região é mais rica que desenvolvida', conclui o estudo. Para os pesquisadores da ONU, há três grandes déficits que mantêm o mundo árabe aquém de seu potencial econômico e humano: liberdade, igualdade para as mulheres e conhecimento. Nenhum país árabe é uma verdadeira democracia. As variações vão da tirania em seu estado mais bruto, como a de Saddam Hussein, no Iraque, a monarquias absolutas, como a da Arábia Saudita, passando por democracias de fachada, como no Egito. A imprensa é, no melhor dos casos, parcialmente livre. Também a utilização das capacidades da mulher no mundo árabe é a menor do mundo, segundo o Pnud. 'Toda a sociedade sofre quando metade de seu potencial produtivo é asfixiada', afirma o estudo. As mulheres, mantidas a distância da participação política e com menor acesso à educação, têm pouca chance de mudar o quadro. Cerca de 50% da população feminina árabe é analfabeta, índice duas vezes maior que entre os homens. Outro grave empecilho ao desenvolvimento é a falta de investimento em pesquisa e o acesso restrito à tecnologia de informação. O mundo árabe aplica em pesquisa sete vezes menos que a média internacional. Quando se olha para a cultura em seu conjunto, a situação não é melhor. O mundo árabe se mantém fechado ao conhecimento que se produz no resto do mundo. Os autores do estudo do Pnud calculam que, nos últimos 1.000 anos, a quantidade de traduções feitas na região equivale à de publicadas na Espanha em apenas um ano.

Ao indagar sobre os motivos do atraso, Bernard Lewis procura a resposta na própria cultura islâmica. Para esse historiador de 85 anos, inglês radicado nos EUA, professor emérito de estudos orientais na Universidade Princeton, os grandes culpados são os próprios árabes – presos ao passado, refratários aos valores da liberdade individual e terrivelmente machistas. Lewis detecta entre os muçulmanos de hoje duas reações possíveis diante do óbvio fracasso de uma civilização outrora esplendorosa. Uma é perguntar: o que fizemos de errado e como podemos consertar? A outra é indagar: quem fez isso conosco? Para Lewis, o mundo árabe, se quiser sair do atoleiro, só tem um caminho: seguir o exemplo da Turquia e adotar os padrões e valores ocidentais da democracia e do mercado o mais rapidamente possível. 'Perguntar quem nos causou esse atraso leva ao jogo de apontar culpados e a teorias conspiratórias e fantasias neuróticas de todo tipo', argumenta. Ditadores como Saddam Hussein acusam o Ocidente por todos os males do mundo árabe e líderes religiosos fundamentalistas apontam o abandono de um suposto verdadeiro Islã como a causa do atraso. 'Se os povos do Oriente Médio continuarem em seu presente caminho, os terroristas suicidas podem tornar-se uma metáfora para toda a região e não haverá saída para uma espiral descendente de ódio, rancor, fúria e autocomiseração', conclui Lewis.


Não é tão simples, rebate Edward Said, um intelectual palestino exilado em Nova York que se tornou uma das vozes mais respeitadas do mundo árabe no Ocidente. Para Said, de 66 anos, professor na Universidade Columbia, Lewis escreve como se entidades como o Ocidente e o Islã 'existissem num mundo de desenho animado, em que Popeye e Brutus surram impiedosamente um ao outro e o boxeador mais hábil leva a melhor'. A colonização, argumenta, criou o mito de uma mentalidade oriental árabe irreconciliável e, no fim das contas, inferior à do Ocidente. O complexo relacionamento entre história, cultura e religião, que gerou enormes diferenças entre as várias regiões árabes assim como fecundos contatos entre estas e os povos cristãos do Ocidente, foi substituído por uma ideologia de confronto. Esmagados por séculos de uma dominação que impôs cruelmente os próprios valores, os árabes procuram, aos poucos, restabelecer suas identidades através do retorno a sua cultura. 'No mundo das ex-colônias, esses retornos produziram variedades de fundamentalismo nacionalista e religioso', constata Said. Em sua visão, não há nada de errado com a cultura árabe ou o Islã em si mesmos. Curiosamente, tanto Lewis quanto Said assinalam o mesmo episódio – a invasão do Egito pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte, em 1798 – como o último suspiro da civilização árabe. Quem expulsou os invasores, anos depois, foi outra potência colonial, a Inglaterra, com uma expedição liderada pelo almirante Horatio Nelson. Foi o início de um longo período de dominação britânica, que só terminaria depois da Segunda Guerra Mundial. Para Lewis, Napoleão e Nelson foram portadores da esperança. Para Said, os pioneiros da desgraça.

sexta-feira, 5 de março de 2010

10 - Livro: Fascismo Liberal

Pessoal, mais uma dica de leitura: Fascismo de Esquerda, de Jonah Goldberg. Comprei a edição americana há um mês na Livraria Cultura por 35,00 reais (a edição em português custa quase 60,00). O título original é Liberal Fascism (editora Penguin). O comentário abaixo sobre o livro é de Nelson Archer e saiu na Veja (21 de outubro de 2009).

"Fascistas são vocês"

O polemista conservador americano Jonah Goldberg cansou de ser insultado pela esquerda de seu país – e devolve a provocação em um livro do qual todos os ídolos democratas saem chamuscados

O que é (ou foi) o fascismo? Pode-se facilmente identificar quais países, regimes e movimentos, entre as duas guerras mundiais, eram fascistas, com a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler à frente. E sabe-se que, em linhas gerais, todos compartilhavam nacionalismo, anticomunismo, autoritarismo, o culto ao líder, a mobilização das massas, um apego à violência, a demonização de inimigos reais ou imaginários. Aqui termina o acordo entre eruditos, começam as interpretações, e se entra numa esfera distinta, na qual "fascista" deixou há muito de ser uma palavra para se converter em palavrão. Poucos se abstêm de usá-lo para dizer que discordam ou não gostam de algo ou de alguém – mas, como açoite verbal, o termo pertence sobretudo à esquerda. Fascismo de Esquerda (tradução de Maria Lucia de Oliveira; Record; 546 páginas; 59,90 reais), do ensaísta americano Jonah Goldberg, uma das jovens estrelas que se agrupam em torno da revista National Review – veículo do vilanizado neoconservadorismo americano –, retruca à esquerda dos Estados Unidos, que vilipendia os conservadores acusando-os de fascistas. Goldberg devolve a acusação, tentando provar, menos por argumentação que por acúmulo de convergências e coincidências factuais, que, ao fim e ao cabo, "fascistas são vocês".

Por alentada que seja, a obra não é nem um apanhado teórico, nem uma investigação histórica. Trata-se antes de uma polêmica popular, o que torna relevante seu contexto. Ela é uma intervenção no longo e aguerrido debate americano entre liberais e conservadores, orientações políticas que, entre nós, equivaleriam, grosso modo, a centro-esquerda e centro-direita. Livre para rotular, Goldberg segue a lógica do insulto até cair, amiúde, no ridículo. Assim, que a Revolução Francesa tenha sido violenta e homicida, não basta, como quer o autor, para caracterizá-la anacronicamente como pecado original e raiz do fascismo. No entanto, se o polemista neoconservador não consegue (como os liberais ou esquerdistas tampouco) aproximar seus adversários decisivamente dos antigos camisas-negras ou estabelecer entre ambos um verdadeiro vínculo genético, nem por isso deixa de arrolar semelhanças e parentescos no mínimo intrigantes e, no limite, desagradáveis.

Não é mistério que, em seus extremos nazista e stalinista, direita e esquerda se assemelhavam mais entre si do que a qualquer forma de democracia civilizada. Goldberg, contudo, ao explorar cerca de um século de "progressivismo" e liberalismo americanos, revela que estes nem sempre estiveram do lado do bem. Do nacionalismo chauvinista ao expansionismo imperial, da eugenia ao racismo, da xenofobia ao antissemitismo, quase tudo o que se atribui à direita foi, em algum momento, testado ou adotado pela esquerda americana, cujos heróis e paladinos saem, se não desmoralizados, decerto chamuscados. Dos quatro grandes presidentes democratas, Woodrow Wilson (que interveio na I Guerra e idealizou a Liga das Nações), Franklin Roosevelt (pai do New Deal e pilar da aliança que, na guerra seguinte, derrotou o Eixo), John Kennedy e Lyndon Johnson (cujas administrações acabaram com a segregação racial), nenhum emerge incólume de Fascismo de Esquerda. Embora seus governos não tenham sido fascistas, Goldberg mostra que eles comportavam elementos do fascismo.

O New Deal rooseveltiano, economicamente menos eficaz do que a lenda declara, envolveu uma mobilização de cima para baixo da população que, encorajada pela propaganda de slogans marciais nos novos meios de comunicação de massa (rádio e cinema), apresentava semelhanças preocupantes com o que ocorria então na Itália, Alemanha e União Soviética. Kennedy, por seu turno, valeu-se pioneiramente da televisão para projetar uma imagem quase monárquica de sua personalidade e gestão. Seu assassinato contribuiu para mitificá-lo como mártir da causa liberal. Que os ídolos republicanos sejam poupados por Goldberg de tão severo exame é da natureza da polêmica. Há nela, porém, informações úteis sobre a mais estereotipada das nações, os Estados Unidos. Publicado antes da eleição de Barack Obama, o livro ajuda a acompanhar com ceticismo a ascensão, atípica em democracias maduras e pragmáticas, de um dirigente messiânico e, de antemão, anunciado como redentor do passado, reconciliador das raças, salvador da pátria. Embora se possa e, em muitas questões, se deva tomar a obra com boas pitadas de sal, não há como ignorar a pertinência de suas melhores provocações.

11 - Livro: Uma Gota de Sangue

Pessoal, outra dica de leitura: Uma Gota de Sangue, de Demétrio Magnoli. O comentário sobre o livro e seu conteúdo (conceito de raça e racismo) é de Diogo Schelp e saiu na Veja (2 de setembro de 2009).

Queremos dividir o Brasil?

"Não", é a resposta que resulta da leitura de Uma Gota de Sangue, de Demétrio Magnoli, um livro ambicioso que investiga as origens ideológicas das cotas raciais

"Cada homem é uma raça." A frase, título de um livro do escritor moçambicano Mia Couto, sintetiza a ideia de que cada indivíduo tem sua história, seu repertório cultural, seus desejos, suas preferências pessoais e, é claro, uma aparência física própria que, no conjunto, fazem dele um ser único. Rótulos raciais são, portanto, arbitrários e injustos. Mia Couto, com sua concepção universalista da humanidade, é citado algumas vezes em Uma Gota de Sangue – História do Pensamento Racial (Contexto; 400 páginas; 49,90 reais), do sociólogo paulistano Demétrio Magnoli, recém-chegado às livrarias. Trata-se de uma dessas obras ambiciosas, raras no Brasil, que partem de um esforço de pesquisa histórica monumental para elucidar um tema da atualidade. Magnoli estava intrigado com o avanço das cotas para negros no Brasil e resolveu investigar a raiz dessas medidas afirmativas. O resultado é uma análise meticulosa da evolução do conceito racial no mundo. Descobre-se em Uma Gota de Sangue que as atuais políticas de cotas derivam dos mesmos pressupostos clássicos sobre raça que embasaram, num passado não tão distante, a segregação oficial de negros e outros grupos. A diferença é que, agora, esse velho pensamento assume o nome de multiculturalismo – a ideia de que uma nação é uma colcha de retalhos de etnias que formam um conjunto, mas não se misturam. É o racismo com nova pele.

Em todos os povos ou períodos da história, a sensação de pertencimento a uma comunidade sempre foi construída com base nas diferenças em relação aos que estão de fora, "os outros". Muitas tribos indígenas brasileiras, por exemplo, chamam a si próprias de "homens" ou "gente" e denominam pejorativamente integrantes de outros grupamentos – esses são "seres inferiores" ou "narizes chatos". O filósofo grego Aristóteles considerava a "raça helênica" superior aos outros povos. Mas até o Iluminismo, no século XVIII, a humanidade não recorreu a teses raciais para justificar a escravidão – tratava-se de uma decorrência natural de conquistas militares. A postulação de que todos os homens nascem livres e iguais criou, porém, uma reação: a fim de embasar o domínio de povos europeus e seus descendentes sobre as populações colonizadas ou escravizadas, começou-se a elaborar uma divisão sistemática de raças, com pretensões científicas. No século XIX, esse pensamento atingiu seu ápice, com a apropriação das teses darwinistas de seleção natural. Os teóricos do racismo científico trataram de estabelecer hierarquias entre os grupos humanos com base em fundamentos biológicos. Com a gradual abolição da escravidão, o racismo científico foi usado para justificar o imperialismo ocidental na África e na Ásia.

Magnoli descreve como duas visões de mundo opostas estiveram em constante tensão ao longo da história mundial recente. A primeira crê numa espécie humana dividida em raças que se distinguem por ancestralidades diferentes, expressas em traços físicos e culturais. Os arautos dessa ideia podem ser chamados, genericamente, de racialistas. A segunda visão, antirracialista, nega a separação da humanidade em categorias inventadas e acredita no princípio da igualdade entre as pessoas. Representam a linha de pensamento antirracialista personalidades como o líder sul-africano Nelson Mandela e os americanos Frederick Douglas, abolicionista do século XIX, e Martin Luther King, líder do movimento em defesa dos direitos civis. Entre os racialistas, figuram o presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt, o ditador alemão Adolf Hitler e o ativista negro americano Malcolm X. O exemplo do regime de Hitler na Alemanha não aparece no livro para tentar provar a tese de que todo pensamento racialista leva ao genocídio, o que obviamente não é verdade, mas para demonstrar o extremo a que se pode chegar quando o estado impõe critérios de raça. A crença de Theodore Roosevelt e outros governantes na supremacia dos brancos sobre os negros não levou a uma política de extermínio, como ocorreu na Alemanha. Para Magnoli, a explicação está nas diferenças fundamentais entre o racismo nazista e aquele predominante em outros países. A principal delas é que, na Alemanha, o racismo combinou-se a um nacionalismo extremado e ao ódio obsessivo em relação aos judeus. Esse contexto levou à busca pela "solução final" – a expulsão em massa seguida da eliminação física dos judeus.

Em sua origem, a tese da purificação racial adotada pelos nazistas foi influenciada pelo movimento eugenista americano, que teve seu auge nas primeiras décadas do século XX. Os eugenistas defendiam o melhoramento genético da população por meio de políticas que impedissem indivíduos considerados inferiores de se reproduzir. Tais medidas, por sua vez, só podiam ser tomadas com a classificação sistemática da população segundo critérios hereditários, entre os quais a raça. Atualmente, com o conhecimento que se tem do DNA humano, a tese de que a humanidade pode ser dividida em raças foi relegada ao ridículo. "O ser humano tem 25.000 genes, dos quais não mais de trinta definem a cor da pele e dos olhos, o formato do rosto, o tamanho do nariz e a textura do cabelo, entre outras características morfológicas", explica o geneticista Sérgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais. Ou seja, na imensidão do genoma humano, os aspectos físicos geralmente usados para classificar as raças não representam nada. Do ponto de vista genético, pode haver mais diferenças entre dois africanos do que entre um deles e um europeu nórdico.

O fato de a ciência concluir que as raças não existem como conceito biológico cria uma dificuldade para os defensores da discriminação reversa (o outro nome para as cotas): inviabiliza a tentativa de usar critérios objetivos para decidir quem pode ou não ser beneficiário de privilégios no vestibular, no mercado de trabalho ou em licitações públicas. Essa dificuldade, aliás, sempre existiu nos países que legislaram com base em raça, mesmo quando esse conceito ainda era considerado uma verdade científica. Nos Estados Unidos, por exemplo, criou-se a regra da gota única de sangue – daí o título do livro de Magnoli –, segundo a qual qualquer indivíduo era considerado negro se tivesse um antepassado de origem africana, por mais longínquo que fosse. Em muitos estados americanos, esse foi o critério para as leis segregacionistas que proibiam, entre outras coisas, que brancos e negros casassem entre si, frequentassem a escola juntos ou até mesmo se servissem do mesmo bebedouro. O sistema americano de classificação de raças sempre omitiu a categoria "mestiços", como se fosse possível existir algum grau de pureza dentro de grupos populacionais. A rotulação oficial nos Estados Unidos é até hoje tão arbitrária que divide os cidadãos segundo critérios de cor de pele (brancos e negros), linguísticos (hispânicos) e geográficos (asiáticos). Durante o infame regime do apartheid na África do Sul, que fez dos não brancos cidadãos de segunda classe até 1994, os funcionários do estado passavam um pente ou lápis no cabelo das pessoas para, dependendo do grau de crespidão, classificá-las como negras ou coloured (mestiças). O método criava situações absurdas como a de membros da mesma família recebendo rótulos distintos.

Uma Gota de Sangue alerta para o que ocorre quando um estado se mete a catalogar a população segundo critérios raciais com o objetivo de, a partir deles, elaborar políticas públicas: pouco a pouco, os próprios cidadãos passam a acreditar naquela divisão e se veem obrigados a defender interesses de gueto. Isso cria conflitos políticos e rancor, inclusive nas situações em que as leis tentam beneficiar um grupo antes segregado. É o caso da Índia, país com o maior programa de cotas do mundo. O complexo sistema indiano de castas, tornado oficial pelo imperialismo inglês no século XIX, levou a que o governo daquele país, na década de 50, concedesse privilégios ao grupo dos intocáveis, ou dalits, e a "outras classes retardatárias" – expressão contida no texto constitucional do país. Uma forma de tentar compensá-los das injustiças sofridas no passado. O resultado é que eles passaram a ser invejados. Em 2008, os membros da etnia gujar, do norte da Índia, entraram em choque com a polícia, em protestos que mataram quatro dezenas de pessoas, para pedir o próprio rebaixamento no sistema de castas. Sua reivindicação: também serem considerados inferiores o suficiente para ganhar cotas no serviço público e em universidades. Conseguiram.

No livro de Magnoli, emerge como um desvio estranho a tentativa de instituir uma classificação oficial de raças no Brasil, país cuja identidade nacional foi construída sobre a ideia da mestiçagem. Não se trata de mito: análises genéticas da população demonstram que o DNA de um brasileiro tem, em média, proporções iguais de heranças maternas de origem europeia, africana e ameríndia. Magnoli argumenta que é exatamente essa realidade mestiça que os defensores das ações afirmativas querem destruir, ao tentar somar todos os que se consideram "pardos" à categoria de "negros". Para os ativistas da negritude, a identidade racial é, na verdade, questão ideológica. Isso explica por que uma das principais perguntas feitas aos candidatos às cotas no Brasil é se já se sentiram discriminados. Resposta correta para conseguir a vaga: sim. A baiana Sabynne Christina Silva Regis preferiu não mentir e, em entrevista de seleção do Itamaraty para uma bolsa de estudos para "afrodescendentes", disse nunca ter sido vítima de preconceito racial. Ela está convicta de que isso lhe custou a vaga. Que uma pessoa se considere "parda" não basta aos racialistas brasileiros. "O que se quer é açular a luta de classes – e, nesse contexto, a mestiçagem é incômoda porque elimina a polarização política com base em raça", diz Leão Alves, secretário-geral da ONG Nação Mestiça, com sede em Manaus.

A ideia de que existem raças é um anacronismo que não condiz com a tradição brasileira e com as mudanças que vêm ocorrendo no mundo civilizado. Barack Obama, presidente do país que inventou a regra da gota única de sangue, define-se não como negro, mas como mestiço. E não deixa de ser curioso que, se fosse brasileiro, isso talvez o impedisse de ganhar uma bolsa no Itamaraty. O filósofo Kwame Anthony Appiah, especialista em estudos afro-americanos da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, colocou a questão nos seguintes termos, em entrevista a VEJA: "O estado brasileiro pode não ter ajudado os descendentes dos escravos a sair da pobreza, mas pelo menos jamais os discriminou ativamente, como ocorreu nos Estados Unidos. Isso faz uma grande diferença. Adotar políticas raciais, agora, significaria criar no Brasil uma minoria com privilégios. Em democracias, a existência de minorias com tratamento especial quase sempre resulta em encrenca. A pergunta que os brasileiros deveriam se fazer é: isso vale a pena?". Uma Gota de Sangue, de Demétrio Magnoli, contribui para que se responda: não, não e não.

Entrevista com Demétrio Magnoli

"Esse caminho conduzirá a uma carteira de identidade racial"

O sociólogo Demétrio Magnoli, autor de Uma Gota de Sangue, conversou com VEJA

O senhor escreveu, certa vez, que ficou incomodado ao deparar com o item "raça" no formulário de matrícula da escola de sua filha. Por quê?
Porque esse é o primeiro documento público no Brasil que compulsoriamente associa as pessoas nominalmente a uma raça. É um documento diferente das pesquisas anônimas do censo demográfico. No caso da matrícula escolar, ao se associar um nome a uma raça, repete-se uma prática fundamental das políticas raciais no mundo inteiro, desde o século XIX. Não vejo nenhum dilema político em que as pessoas, na esfera privada, imaginem participar de uma raça. É um direito de cada um criar identidades próprias. O problema é quando o estado cria e impõe um rótulo às pessoas. No caso das matrículas, isso foi feito através de uma norma do Ministério da Educação (MEC), válida para escolas públicas e privadas. Os pais devem declarar a "raça" de seus filhos. Hoje, todos os formulários de saúde e educação no país têm esse item. O Brasil está oficializando as identidades raciais.

Qual é o perigo?
A função desse conjunto de documentos é impingir aos cidadãos uma marca racial da qual não poderão fugir e que depois terá efeitos práticos em sua vida, no vestibular ou no mercado de trabalho. Estamos trilhando um caminho que conduzirá a uma carteira de identidade racial.

Quem ganha com isso?
Em todos os lugares em que foi aplicado esse tipo de medida, formaram-se elites políticas sustentadas sobre bases raciais. Seu interesse é ganhar influência, votos e audiência social. No Brasil, os promotores dessas políticas imaginam que o racismo brasileiro leva as pessoas a "negar a sua verdadeira raça". Para eles, incentivos oficiais, vagas em universidades e cotas no mercado de trabalho vão ajudar os mestiços a "assumir a sua negritude" – frase que se ouve a toda hora. Pretende-se com isso criar uma larga base social para que os promotores das políticas raciais se ergam como lideranças políticas. Eles querem criar um racismo de massas, algo que não existe no Brasil. Há, sim, um racismo difuso, mas não um ódio racial de massas.

Por que essa agenda foi adotada pelo Partido dos Trabalhadores?
Porque o partido mantém relações com ONGs que promovem tais políticas, muitas por influência de entidades filantrópicas americanas. Como não têm apoio popular, as ONGs precisam se atrelar a um partido para ganhar representatividade e exercer pressão sobre o estado. Embora hoje o PT seja a principal agremiação a conduzir essa bandeira, vale lembrar que as políticas raciais começaram com o PSDB, durante a Presidência de Fernando Henrique Cardoso.

O que é avaliado de verdade na hora de conceder cotas?
No estado racial, as pessoas têm de demonstrar uma identidade e assumi-la. Os desviantes são aqueles que se recusam a fazê-lo. Como não existe ninguém "verdadeiramente negro", assim como não existe "verdadeiramente branco", o que se tenta avaliar é, no fundo, a ideologia. Entre pessoas igualmente pardas, ganha a vaga aquela que se diz vítima de discriminação. Essa resposta é associada a uma ideologia da negritude que serve de critério para as comissões universitárias decidirem sobre a distribuição de cotas. É quase o mesmo que beneficiar no vestibular os alunos que estão de acordo com as ideias de determinado partido.

A criação de um racismo de massas é um caminho sem volta?
Volta sempre existe, mas é preciso saber a que custo. Em Ruanda, pagou-se o preço de um genocídio. Posteriormente, o estado ruandês decidiu proibir a classificação racial da população. Se o Brasil insistir nas políticas raciais e se elas se tornarem enraizadas, coisa que ainda não ocorreu, a sociedade vai pagar um preço alto, impossível de prever.

12 - Livro: Não Somos Racistas

Pessoal, mais uma dica de leitura: Não Somos Racistas, de Ali Kamel. O comentário sobre o livro e seu conteúdo (conceito de raça e racismo) é de Jerônimo Teixeira e saiu na Veja (16 de agosto de 2006).

Contra o mito da "nação bicolor"

As falácias da política de cotas raciaisna análise demolidora de Ali Kamel


No início dos anos 1930, às vésperas da ascensão do nazismo, as posições pacifistas do físico alemão Albert Einstein geravam rancor entre seus compatriotas. Com o título de 100 Autores contra Einstein, um livro coletivo foi publicado para atacar suas idéias. Einstein respondeu com sua inteligência característica: "Por que 100 autores? Se eu estivesse errado, um só bastaria". A anedota merece ser lembrada a propósito da recente guerra de abaixo-assinados gerada pela Lei de Cotas e pelo Estatuto da Igualdade Racial – projetos de lei que visam a estabelecer políticas de "ação afirmativa" para favorecer os negros, com cotas raciais nas universidades e no funcionalismo público. Há pouco mais de um mês, um manifesto contrário ao estatuto, assinado por 114 intelectuais, foi entregue ao Congresso. Os movimentos sociais que apóiam as cotas responderam de bate-pronto com outro abaixo-assinado, este com 330 signatários. Agora, quando a poeira da discussão já começava a assentar (e a votação do estatuto na Câmara dos Deputados ficou para o ano que vem), o diretor executivo de jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel, lança um livro fundamental para entender a questão. Não Somos Racistas (Nova Fronteira; 144 páginas; 22 reais) demonstra que as chamadas "ações afirmativas" são uma resposta irracional para um problema fictício – o racismo institucional, que não vigora no Brasil. Um só autor basta para provar que 330 estão errados.

O engano fundamental das políticas raciais estaria, de acordo com Kamel, em considerar que a sociedade brasileira é constitutivamente racista. Existe racismo no Brasil, mas ele não é um dado predominante da cultura nacional e não conta com aval de nenhuma instituição pública. Ao exigir, por exemplo, que certidões de nascimento, prontuários médicos e outros documentos oficiais informem a raça de seu portador, o Estatuto da Igualdade Racial está na verdade desprezando uma longa tradição de mistura e convivência em prol de categorias raciais estanques e estúpidas. É, na prática, um exercício de discriminação racial, sancionado pelo Estado.

A miscigenação, dado central da sociedade brasileira, é o fato recalcado pelos defensores das cotas. A lógica beligerante implícita do estatuto e da lei de cotas é de que existem dois grandes grupos no Brasil: os brancos, opressores, e os negros, oprimidos. Isso se revela até no uso das estatísticas do IBGE – e um dos pontos fortes de Não Somos Racistas é a clareza com que o autor (que, além de jornalista, tem formação em ciências sociais) destrinça números para desmontar a falácia das cotas. Nas contas dos que defendem medidas do gênero, os negros são 48% da população, mas representam 66% dos brasileiros pobres. Kamel parte da mesma fonte – a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, do IBGE – para observar que, na verdade, os negros são uma minoria. Os filhos da miscigenação, definidos como "pardos", são mais numerosos e têm um lugar ambíguo no discurso racial. Sendo, em geral, descendentes de africanos e de europeus, por que deveriam ser considerados apenas "negros"? Pardos e negros, somados, representam, sim, a maioria dos pobres brasileiros – em números absolutos, 38 milhões. Mas o contingente de brancos pobres também é enorme. Como justificar uma política de avanço "racial" que deixaria para trás a massa de 19 milhões de brancos pobres? Os mulatos mais claros serão favorecidos ou esquecidos por essas políticas de discriminação? O Estatuto da Igualdade Racial, como se vê, é uma receita para que os cidadãos brasileiros recebam tratamento desigual por parte do Estado. A pobreza, argumenta Kamel, é a chaga social renitente do Brasil. Ela não discrimina: atinge brancos, negros, mulatos. "Negros e pardos são maioria entre os pobres porque o nosso modelo econômico foi sempre concentrador de renda: quem foi pobre (e os escravos, por definição, não tinham posses) esteve fadado a continuar pobre", observa Kamel. Negros, brancos e pardos, diz o autor, só sairão da pobreza por força de políticas que incluam a todos – especialmente com investimentos consistentes em educação.

Kamel também é muito eficiente ao traçar o histórico das equivocadas políticas raciais debatidas hoje. A idéia de que o Brasil é racista foi, de acordo com o autor, inventada a partir dos anos 1950 por cientistas sociais como Florestan Fernandes – e Fernando Henrique Cardoso. Foi em consonância com as idéias expostas na obra do sociólogo – como Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional – que o presidente Fernando Henrique implementou as primeiras políticas de "ação afirmativa" no funcionalismo público. A distorção que Kamel chama de "nação bicolor" teve início ali, e ganhou uma continuidade "canhestra" no governo Lula. Caberá aos deputados eleitos neste ano dar um ponto final nessa escalada, recusando o Estatuto da Igualdade Racial. Seria salutar que todos eles lessem Não Somos Racistas.

13 - Livro: Sobre o Islã

Pessoal, mais uma dica de leitura: o livro Sobre o Islã – A Afinidade entre Muçulmanos, Judeus e Cristãos e as Origens do Terrorismo, de Ali Kamel. O comentário abaixo é de Mario Sabino e saiu na revista Veja (22 agosto 2007):

O Islã próximo

Ali Kamel desnuda a religião muçulmana das vestesdo exotismo e faz a defesa da guerra no Iraque

Ali Kamel, diretor executivo de jornalismo da Rede Globo, tornou-se um especialista em dinamitação de lugares-comuns e idéias fora do lugar. Para tanto, conta com rigor e aplicação vários metros acima dos níveis habituais dos ensaístas destas plagas. Ele também exibe bastante destemor em seus bons combates. No asilo de conceitos que é o Brasil, há que ter couraça das mais duras (e estômago dos mais fortes), para agüentar os golpes desferidos pelos velhos patrulheiros da imprensa e da universidade – golpes sempre vindos da esquerda e, portanto, abaixo da linha da cintura. Há um ano, Kamel lançou o livro Não Somos Racistas, no qual demonstra que as "ações afirmativas" para favorecer os negros, como o regime de cotas nas faculdades, são de uma irracionalidade tonitruante para uma questão não existente no país – o racismo de matiz americano. O problema nacional, enfatiza Kamel, não é racismo, mas pobreza – que não diferencia milhões de negros de milhões de brancos e de milhões de pardos. Apesar da patrulha, Não Somos Racistas entrou na lista de mais vendidos de VEJA e conseguiu abrir um enorme buraco no monólito conceitual que domina a discussão sobre o assunto no Brasil. Agora, seu autor lança-se a um outro desafio, com o perdão da palavra batida: provar que o islamismo não é uma religião violenta em sua essência (não mais do que o judaísmo e o cristianismo, pelo menos). E que – quanta intrepidez – a guerra travada no Iraque não é tão absurda como faz crer a maioria dos comentaristas. Tais são os temas de Sobre o Islã – A Afinidade entre Muçulmanos, Judeus e Cristãos e as Origens do Terrorismo (Nova Fronteira; 320 páginas; 34,90 reais).

Como revela em parte seu próprio nome, Kamel tem um pé no enredo religioso que aborda não só com desassombro, mas também com didatismo. Seu pai é sírio e muçulmano. Pelo lado materno, as raízes são brasileiras – e católicas. Sua mulher é de origem judaica. "Eu acredito que minha história familiar me possibilita um olhar especial sobre as três religiões monoteístas", escreve ele. O livro começa com o relato pormenorizado de um encontro, registrado em vídeo, de Osama bin Laden e asseclas com um chefe muçulmano que havia chegado ao Afeganistão em novembro de 2001. Na conversa, eles comemoram os atentados nos Estados Unidos e tecem loas a Deus por ter propiciado a carnificina. Alguns dos terroristas falam das supostas visões antecipatórias que tiveram sobre o que consideram ser uma bênção divina. "Como podem envolver Deus nisso? Que processo leva essas pessoas a criar, a partir de uma religião que se quer pacífica, um dos movimentos políticos mais violentos que o mundo já viu, uma das maiores ameaças ao nosso estilo de vida, às liberdades essenciais do ser humano?", pergunta-se o autor, extravasando uma perplexidade que está longe de ser geral, visto que se disseminou no Ocidente um juízo negativo a respeito do Islã.

Para separar o que é dado religioso daquilo que não passa de interpretação indevida ou apropriação indébita, Kamel empreende uma tarefa hercúlea. Seu objetivo expresso – e plenamente alcançado – é o de demonstrar como o islamismo, em que pesem suas vestes exóticas aos olhos ocidentais, baseia-se nos mesmos pilares do judaísmo e do cristianismo. Nessa direção, ele se aprofunda na gênese comum das três religiões, por meio da comparação entre passagens da Bíblia e do Corão que narram a vida de personagens fundadores, como Noé, Abraão, Isaac, Ismael e José, até chegar a Jesus. No que se refere a este último, uma curiosidade – na visão dos muçulmanos, ele não é filho de Deus, e sim um profeta maior do que todos os outros. Tanto que, como relata Kamel, "o Islã não aceita a sua crucificação: tudo não teria passado de uma ilusão, já que Jesus teria subido aos céus em seu corpo físico. Seus algozes teriam sido iludidos, viram uma crucificação que nunca houve. Jesus, portanto, não morreu, mais um milagre que Deus concedeu a ele". No final dos tempos, porém, acreditam os islamitas, Jesus voltará à Terra, para derrotar o Anticristo e governar o mundo por 45 anos. Em sua segunda vinda, ele se casará, gerará filhos e morrerá normalmente.

Para os leigos, é surpreendente a figura de Maomé que emerge da síntese do Corão feita por Kamel. Do profeta iniciador do islamismo pode-se dizer que foi humano, demasiado humano. Teve uma infância cheia de dificuldades, permaneceu analfabeto até cerca de 40 anos, quando foi visitado pelo arcanjo Gabriel, e suas primeiras visões causaram-lhe angústia. Uma vez imbuído da missão de levar adiante a palavra do Deus único (ou Revelação), experimentou grande resistência para convencer seu povo a abandonar o politeísmo. Em visita ao Paraíso – sim, de acordo com a tradição, ele esteve lá quando vivo –, chegou a negociar com Deus o número de orações diárias a ser feitas pelos muçulmanos, por orientação de um judeu: ninguém menos do que Moisés (veja trecho). Maomé também jamais teve controle algum sobre os versículos que lhe eram soprados por Gabriel e viriam a compor o Corão, cuja forma escrita só seria consolidada depois da morte do profeta. Não há registro de que tenha operado milagres. Afirma Kamel: "O certo é que Maomé, ao longo de sua vida, nunca escondeu que era um homem como outro qualquer e, dizem as tradições, gostava de lembrar aos fiéis o que dele dizia o Corão: Maomé não é mais do que um Mensageiro a quem outros precederam".

Esse simples mensageiro deixou uma família dividida, que se digladiaria em torno da sucessão de Maomé e da qual o islamismo, por seu turno, herdaria as vertentes sunita e xiita. A diferença entre ambas, explicada em detalhes por Kamel, é basicamente a seguinte: para os sunitas, o profeta não indicou sucessor, a Revelação encontrou o seu termo com a morte de Maomé e só o que há a fazer é seguir a Suna, os mandamentos legados pelo profeta. Para os xiitas, Maomé foi sucedido por um primo, Ali, o primeiro imã (ou guia espiritual), e a Revelação ainda guarda aspectos ocultos, a ser desvendados por outros imãs. A palavra xiita vem do árabe shi' at'Ali, cujo significado é "partidários de Ali". Da dissensão entre sunitas e xiitas nasceria grande parte das animosidades que explodem no interior do Islã e também de dentro dele em relação ao exterior – cujo lado mais apavorante é o terrorismo.

Apesar da divisão interna do Islã, Kamel explica que a concepção de que se trata de uma religião movida pelo ódio é fruto da ignorância ocidental e do despotismo de seguidores seus que compõem uma minoria. Há mensagens de violência no Corão? Sim, mas também há na Bíblia judaico-cristã. Boa parte da expansão muçulmana foi realizada pela força da espada? Sim, mas tanto quanto a cristã. Seus mandamentos e prescrições são por vezes contraditórios? Sim, mas qual religião não embute contradições? Para o autor, o que importa é que, deixando de lado certas vicissitudes, o Islã no mais das vezes teve – e tem – como regra a boa convivência com as outras religiões. Diz Kamel, depois de citar versículos do Corão simpáticos ao judaísmo e ao cristianismo: "Não tenho muitas dúvidas de que, ao longo da maior parte de sua história, a ênfase na repulsa a judeus e cristãos sempre foi bem menos intensa do que a ênfase no acolhimento".
Nos capítulos derradeiros do livro, Kamel defende a tese segundo a qual chamar os radicais islâmicos de fundamentalistas é um equívoco que os "enobrece" do ponto de vista religioso. Na realidade, eles seriam apenas totalitários políticos – mais próximos, assim, de um Hitler do que de um Jim Jones, na comparação do autor. É por combater esse totalitarismo que a guerra no Iraque seria, mais do que circunstancialmente necessária, moralmente justa. Inclusive para a sobrevivência do próprio Islã. Maomé e Bush do mesmo lado, quem diria. A lógica da máquina do mundo pode ser infernal. E a coragem de Kamel, assim como Alá, é grande.