domingo, 9 de outubro de 2016

96 - Uma crítica aos pressupostos do ajuste econômico

Uma crítica aos pressupostos do ajuste econômico

PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS
LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Folha de S. Paulo (09/10/2016)

Fomos honrados pela citação de nosso artigo (publicado no site da "Ilustríssima") por Luiz Fernando de Paula e Elias Jabbour, que responderam a um artigo polêmico de Marcos Lisboa e Samuel Pessôa a respeito da diferença entre direita e esquerda em economia. Concordamos em geral com a resposta, mas pretendemos levantar novos elementos para reflexão.

O argumento central de Lisboa e Pessôa é que, nos EUA, os debates entre direita e esquerda são resolvidos com o uso de métodos quantitativos de verificação de hipóteses e que, no Brasil, isso não se faz. Nesse sentido, o fenômeno da heterodoxia "sem uso de dados" seria tipicamente brasileiro, como reiterado em novo artigo de Lisboa e Pessôa em 04/09.

Os equívocos de Lisboa e Pessôa são diversos e alguns deles foram apontados por de Paula e Jabbour. Primeiro, não é verdade que praticamente não existam heterodoxias fora do Brasil, mas apenas divisões entre esquerda e direita no seio da "economia tradicional". Esse desconhecimento reflete o fato de que as faculdades neoclássicas não estudam as heterodoxias, embora os heterodoxos estudem e sabiam bem porque rejeitam a ortodoxia neoclássica.

Por outro lado, como de Paula e Jabbour alertaram bem, há uso abundante de técnicas econométricas entre economistas heterodoxos, particularmente (agregaríamos) o uso de séries temporais. É verdade que a heterodoxia recorre a métodos quantitativos com muito mais ceticismo do que a ortodoxia, e quase sempre em simbiose com análises qualitativas (institucionais e históricas). Contudo, enquanto as meta-regressões de John Stanley documentaram fartamente o viés de publicação dos resultados empíricos desejados pelos neoclássicos, autores como Anthony Thirlwall, John McCombie e Jesus Felipe, por exemplo, apresentam estudos econométricos que refutam cabalmente as hipóteses neoclássicas sobre determinantes do crescimento econômico e da distribuição de renda, sendo convenientemente ignorados pela ortodoxia.
O que deve ser esclarecido é o que de fato diferencia a ortodoxia neoclássica e as heterodoxias. Depois de fazermos isso, mostraremos que as proposições teóricas de Lisboa e Pessôa são refutadas empiricamente mesmo no seio da ortodoxia, mas resolvidas pelas heterodoxias. Finalmente, abordaremos o desastre da proposta ortodoxa de austeridade no Brasil.

ORIGENS

A ortodoxia e as heterodoxias podem ser entendidas como derivações da economia política fundada por Adam Smith. Por um lado, Smith alegava que a livre concorrência levaria à eficiência e harmonia no uso dos recursos, justificando a liberação das restrições à busca de interesses pelos indivíduos e o livre comércio entre países. Por outro lado, Smith posiciona os indivíduos em classes sociais (aristocratas da terra, burgueses e trabalhadores) que têm conflitos agudos, documentando coordenação dos empresários para rebaixar salários e aprovar leis que proíbem a reação coletiva dos trabalhadores.

Grosso modo, a ortodoxia neoclássica parte do indivíduo como unidade de análise e chega ao equilíbrio geral entre a soma de indivíduos que formam uma economia harmônica. As heterodoxias partem da assimetria entre classes sociais ou países e enfatizam a dinâmica contraditória e a instabilidade geradas pela busca de enriquecimento dos empresários.

Por isso, enquanto a ortodoxia legitima um Estado mínimo ou com intervenções pontuais, as heterodoxias justificam políticas mais estruturantes e maior regulação dos mercados. Na primeira metade do século 19, Alexander Hamilton nos EUA e Friedrich List no mundo alemão já questionavam a harmonia entre países desiguais, inspirando políticas protecionistas e de desenvolvimento.

Em Smith, a distinção entre indivíduo e classe social não muda sua preferência pelos burgueses. Tanto ele quanto David Ricardo justificaram a concentração do patrimônio e da renda pelos capitalistas. Sua abstinência dos prazeres do consumo supostamente geraria a poupança necessária para o investimento que, em seguida, geraria a riqueza que gotejaria para os trabalhadores perdulários, para as rendas dos aristocratas da terra e para a arrecadação tributária. É isso que Karl Marx e, depois, Keynes questionariam, fundando heterodoxias.

A ênfase no individualismo metodológico só se completou, porém, com a revolução marginalista proposta na década de 1870 por Jevons, Menger e especialmente Walras, patrono do modelo de equilíbrio geral que é a base da ortodoxia contemporânea. O destaque da economia política clássica nas classes sociais é substituído, então, pelo equilíbrio harmônico e justo entre indivíduos livres e iguais, que não se preocupam mais com a aprovação simpática do outro como dizia Smith, mas apenas com sua vantagem utilitária, à la Bentham.
Assim, a ortodoxia neoclássica parte do axioma (não-empírico) de indivíduos racionais e maximizadores de utilidade de acordo com preferências e dotações de recursos que precedem sua interação social. Nem suas relações nem suas preferências seriam estruturadas, assimetricamente, de acordo com seu posicionamento em classes sociais (e países) com poder diferente sobre recursos econômicos e políticos e sobre a formação de convenções sociais.

Partindo desses supostos axiomáticos, a dedução lógica assegura a conclusão esperada desde Adam Smith: as interações livres entre indivíduos (e países) levam a um equilíbrio estável e maximizador, satisfatório para todos. Como as interações individuais não são estruturadas por relações desiguais entre classes sociais e países que mudam historicamente, os fenômenos não precisam ser entendidos com base em uma análise qualitativa de assimetrias estruturais e suas transformações complexas, como é típico das heterodoxias.
À moda positivista, a causalidade é mera concomitância regular de eventos em uma economia de mercado que é essencialmente a mesma em qualquer tempo e espaço. Assim, os fenômenos são explicados pela mudança exógena de preferências, técnicas e intervenções políticas, gerando incentivos comunicados pelos preços que, por sua vez, induzem a reação de indivíduos maximizadores até que um novo equilíbrio seja alcançado.

A moeda é vista apenas como um véu que facilita trocas reais, enquanto o sistema financeiro apenas intermedia recursos reais entre poupadores e investidores. Assim, a inflação atrapalha a poupança e as interações mercantis que sempre tendem ao pleno emprego dos recursos reais, resultando de alguma intervenção exógena, como gastança do governo ou egoísmo dos sindicatos. Os equilíbrios aquém do ótimo não seriam resultados endógenos das interações, mas meras reações da economia de mercado a intervenções que querem levá-la além do ótimo.

O DESAFIO DE KEYNES

Em 1936, Keynes desafiou a ortodoxia ao afirmar que a economia monetária de produção tinha mecanismos endógenos que não asseguravam o equilíbrio com pleno emprego. O pleno emprego era uma situação possível e especial, mas uma teoria geral deveria explicar outros estados de equilíbrio sem pleno emprego. Keynes alegou que a mera disponibilidade de recursos não assegurava que fossem usados ao máximo, pois os capitalistas investiriam caso houvesse expectativas favoráveis de demanda efetiva para ocupar a capacidade ociosa.
Se imaginarem que a capacidade ociosa não será ocupada e estiverem endividados, os empresários podem destinar recursos para o pagamento de dívidas ou para a constituição de reservas financeiras. O que é racional para o indivíduo, contudo, é ruim para a classe: no agregado, a queda do gasto significa queda de receitas, o que pode tornar ainda mais difícil pagar dívidas e induzir a novas contrações dos gastos e das receitas.

Ao invés da causação cumulativa, a ortodoxia confia no feedback negativo da flexibilidade de preços para restaurar o equilíbrio maximizador: a queda de preços e salários aumentaria a demanda automaticamente. Keynes acusa aí uma nova falácia de composição: preços menores reduziriam a capacidade de pagamento de dívidas e encareceriam sua rolagem, enquanto salários menores reduzem o gasto dos capitalistas, mas também seu nível de produção e suas receitas, inibindo ainda mais o investimento. Michal Kalecki, o principal macroeconomista marxista contemporâneo de Keynes, diria que os trabalhadores tendem a gastar o que ganham, mas os capitalistas ganham o que gastam.

De nada adianta que o corte do gasto privado leve a uma redução da arrecadação de impostos. Se o governo cortar despesas, as receitas do setor privado voltariam a cair e a capacidade ociosa a subir. E nada garante que as exportações líquidas aumentem para compensar a contração da demanda interna.
Isso é agravado pelo funcionamento do sistema financeiro. Como mostrou Hyman Minsky, o sistema não se limita a intermediar recursos reais entre poupadores e investidores: ele cria poder de compra, endogenamente, através da expansão do crédito, alimentando um otimismo crescente que rebaixa exigências para concessão de empréstimos e inflaciona o preço de ativos financeiros.

Quando o ciclo muda de direção, as convenções sociais que animam a valoração de ativos tornam-se pessimistas, levando à queda de preços à medida que são liquidados em uma busca pela liquidez de saldos monetários e títulos da dívida pública. O aumento da poupança financeira desejada microeconomicamente não leva a um aumento da poupança macroeconômica, pois os investimentos caem e, com eles, a renda agregada, os lucros e a capacidade de pagar dívidas.

Assim como a elevação de investimentos, consumo dos trabalhadores, gasto público pode se realimentar e levar a economia a um boom de otimismo e tomada de riscos crescentes, a reversão dos gastos pode alimentar um círculo vicioso de pessimismo e queda de demanda até uma crise financeira, se a deflação de ativos financeiros levar à desconfiança quanto à solvência dos bancos que financiaram a expansão e a especulação.

O recado de Keynes é que o sistema não tem a capacidade de se auto-regular. Sem que o governo diminua sua poupança e incorra em déficits quando os empresários resolvem poupar coletivamente, a busca de poupança será frustrada pela queda da renda agregada. Sem que bancos centrais reduzam juros, ofereçam créditos que os bancos não conseguem contratar no interbancário e até comprem ativos quando os bancos os liquidam, a desaceleração cíclica e o esgotamento da bolha financeira acabará em falências bancárias e em uma montanha de dívidas impagáveis.

Melhor que remediar, contudo, seria prevenir a instabilidade com a construção de instituições apropriadas. Primeiro, o planejamento e coordenação de um volume amplo de investimentos públicos reduziria a instabilidade do investimento privado ao assegurar um nível adequado de demanda efetiva. Segundo, o banco central deveria assegurar a liquidez dos bancos, mas em troca proibir ou restringir fortemente o financiamento de posições nos mercados de ativos, separando o financiamento do investimento produtivo e os ciclos especulativos. Terceiro, controles de capitais proibiriam a especulação nos mercados de câmbio, enquanto instituições multilaterais financiariam desequilíbrios de balanço de pagamento sem impor uma recessão, que apenas transferiria o desequilíbrio de um país a outro. Finalmente, políticas de renda e sociais deveriam inibir a desigualdade, pois a maior propensão a consumir dos trabalhadores (em relação aos ricos) ampliaria o multiplicador do gasto autônomo e contribuiria para um nível adequado de demanda para os investimentos.

A RESPOSTA NEOCLÁSSICA

A reação ortodoxa foi enquadrar a macroeconomia de Keynes no arcabouço neoclássico, fazendo da situação de ociosidade de recursos novamente um caso particular da microeconomia do equilíbrio geral. Os macroeconomistas neoclássicos não abandonaram o individualismo metodológico nem incorporaram a concepção de causação cumulativa e endógena dos ciclos de crédito e investimento, o papel da incerteza e das convenções sociais que induzem os agentes a comportamentos individualmente racionais, mas coletivamente irracionais em ondas de otimismo que se desdobram em pessimismo, em razão do excesso de investimento em capacidade ociosa, inflação de ativos e endividamento.

Os neoclássicos não chegaram ao resultado keynesiano apontando motivos endógenos à interação entre capitalistas, pois mantiveram a suposição de indivíduos com acesso simétrico aos mercados de crédito e seguros e às melhores informações e tecnologias, usando o mesmo modelo teórico e operando em concorrência perfeita. O sistema só não seria levado ao equilíbrio maximizador por causa de falhas de mercado que, no fundo, eram um bloqueio exógeno a um sistema que não teria qualquer instabilidade intrínseca. Não haveria imperfeição ou equilíbrio sub-ótimo na realidade sem a perfeição subjacente ao modelo de indivíduos racionais e maximizadores de utilidade.

O irrealismo dos supostos e a experiência recorrente de crises levou a questionamentos crescentes dentro e fora da igreja neoclássica: como confiar nas previsões se os supostos eram cada vez mais deslocados de uma realidade de grandes empresas e bancos com poder oligopólico crescente? A falsa solução foi proposta por Milton Friedman em 1953, criando a metodologia neoclássica moderna e sua ênfase na formalização matemática e métodos econométricos.

Friedman alegou que os economistas neoclássicos não deveriam se importar com o irrealismo das hipóteses sobre a concorrência perfeita e sobre o comportamento dos indivíduos. Não era mais necessário fazer pesquisa empírica e histórica sobre as condições institucionais do capitalismo realmente existente. Bastava partir de supostos escolhidos arbitrariamente (axiomas não-empíricos) e supor que o mundo funciona "como se" eles fossem válidos. Ao invés de explicar, tratava-se simplesmente de prever a correlação entre variáveis exógenas e endógenas ao modelo, supondo, com toda a fé, que os elos causais entre elas resultem da operação (não observada) de indivíduos livres sem interações assimétricas.

A imensa maioria dos ortodoxos sequer sabe que a proposta metodológica de Friedman, próxima do instrumentalismo, é rejeitada quase universalmente entre filósofos e epistemólogos, porque faz da economia a única ciência em que a maioria dos praticantes não se preocupa em explicar fenômenos, mas apenas prever correlações com base em descrições e supostos completamente irrealistas sobre o funcionamento do objeto.
A despeito de sua artimanha metodológica, todas as hipóteses de Friedman foram refutadas quando se mostrou que confundiam causalidade e correlação ou que a correlação nem existia: que a oferta de moeda era exógena; que a variação de preços dependia da oferta exógena de moeda; que a velocidade de circulação da moeda era praticamente constante; que os agentes econômicos não se preocupavam com variáveis nominais; que a especulação estabilizante levaria o preço de ativos ao seu equilíbrio fundamental.

Não obstante seu fracasso teórico, a liberação do irrealismo dos supostos permitiu que vários economistas neoclássicos formulassem hipóteses ainda mais ousadas para elogiar a perfeição dos mercados e a imperfeição de políticas que busquem limitar e orientar comportamentos econômicos. A economia política neoclássica, por exemplo, admitiu de modo protocolar a existência de falhas de mercado (como monopólios naturais e a poluição), mas as considerou raras e menores do que as falhas dos governos que tentassem revertê-las.

Era a senha para o ataque neoliberal contra as instituições de regulação do capitalismo construídas no pós-guerra e desmontadas a partir da década de 1980. A revolução das expectativas racionais, liderada por Lucas, Barro e Sargent, levou ao extremo a confiança na mecânica dos mercados livres. Para os autores novo-clássicos, como os agentes racionais sabem que o aumento do gasto público levará à elevação futura de impostos, anulam completamente a política fiscal com cortes compensatórios dos gastos privados, para economizar recursos para o pagamento futuro de impostos. A melhor política contracíclica seria, portanto, cortar o gasto público, o que levaria os agentes a aumentar o gasto privado desde logo!

Como os mercados financeiros seriam eficientes e bolhas de ativos seriam impossíveis, as restrições às operações financeiras deveriam ser eliminadas ou fortemente reduzidas para permitir a melhor alocação possível dos recursos. Finalmente, políticas de rendas e sociais deveriam ser "flexibilizadas" para permitir a redução de salários e o aumento da poupança, a realocação de trabalhadores entre ramos e o aumento dos incentivos para o trabalho duro.

Hoje em dia, o campo neoclássico é dividido em dois grupos. A visão novo-keynesiana, mais à esquerda, reconhece falhas de mercado (rigidez de preços e salários ou assimetrias de informação) e confia na capacidade do Estado em regulá-las, enquanto os novo-clássicos desconfiam à direita. Os novo-keynesianos defendem políticas contra a desigualdade, mas, contra Keynes, compartilham com os novo-clássicos a hipótese de que geram perda de eficiência e crescimento. Também admitem a política fiscal "de emergência" durante crises, mas até 2008 se uniram em uma "nova síntese" que alegava que novas crises seriam improváveis graças à submissão dos banqueiros centrais às regras do regime de metas de inflação. Nenhuma das escolas neoclássicas previu a crise financeira mundial, ao contrário de inúmeros autores heterodoxos que mantiveram a concepção dinâmica das instabilidades do capitalismo herdada de Marx, Keynes e Minsky.

AUTOCRÍTICA SEM TEORIA

É claro que o fracasso das políticas e reformas neoliberais não poderia passar desapercebido pelo campo neoclássico. Curioso é que a autocrítica não passe perto dos neoclássicos brasileiros. Lisboa e Pessôa, por exemplo, sustentam o dogma que "em geral, as economias operam nas proximidades do pleno emprego" e não o consideram refutado pelas evidências desde 2008.

Continuam afirmando a contradição - central ao programa neoliberal - entre busca de igualdade e ganho de eficiência e crescimento, como se o aumento da desigualdade não tivesse convivido com redução do crescimento nas três décadas de neoliberalismo e como se até o FMI já não rejeitasse tal causalidade.

Também defendem a pauta mínima dos neoinstitucionalistas anglo-saxões quanto aos direitos de propriedade e gastos em educação como fonte do poderio de seus países, e não a percebem refutada 1) pelos casos de desenvolvimento com planejamento industrial, empresas estatais e bancos públicos nas periferias do capitalismo, 2) pelo fato de que regras legais, direitos de propriedade intelectual e o gasto educacional foram ampliados nas últimas três décadas, o que não impediu o aumento e aprofundamento das crises financeiras depois do ataque neoliberal, liderado por reformadores anglo-saxões, às instituições keynesianas de regulação dos mercados.

Com efeito, os países que mais cresceram foram os que combinaram a flexibilidade da empresa privada com controles amplos sobre o sistema financeiro, assim como empresas estatais, bancos públicos e políticas industriais que orientavam investimentos públicos e privados, internos e externos. Em suma, o neoliberalismo fracassou na promessa de alocar melhor os recursos (sem crises) e de ampliar a desigualdade para gerar mais crescimento econômico.

É curioso que Lisboa e Pessôa aleguem que as controvérsias teóricas devam ser resolvidas com evidências empíricas, mas ao mesmo tempo desconheçam as evidências que os próprios neoclássicos juntaram contra as proposições teóricas que exportaram, desde a década de 1980, para o Brasil e o resto do mundo através do Consenso de Washington.

Há poucas semanas o Fundo Monetário Internacional surpreendeu ao publicar uma autocrítica aguda do neoliberalismo. A autocrítica envolveu três aspectos do programa que o Fundo impôs aos países periféricos desde a década de 1980: 1) liberalização financeira; 2) a relação entre desigualdade e crescimento econômico; 3) austeridade fiscal.

É digno de nota que tamanha autocrítica se fez sem qualquer reflexão teórica profunda (apesar das dúvidas de Olivier Blanchard), como se não houvesse sistemas universitários e teóricos que formassem economistas que previam o fracasso das reformas neoliberais desde o início. Mais do que isso: como se o próprio patriarca do FMI, John Maynard Keynes, não tivesse criado um sistema teórico que explica porque fracassam as políticas e instituições que a nova ortodoxia neoliberal do FMI difundiu pelo mundo quarenta anos depois de sua criação, apoiada pelas "melhores" faculdades de economia e pelo próprio governo dos EUA, assim como por "think-tanks" financiados por grandes empresários e corporações.

Diante da descoberta muito tardia do fracasso das previsões de seu sistema teórico de base neoclássica, os neoclássicos não sabem o que fazer, a não ser agregar hipóteses secundárias, ad hoc, por cima de modelos hipotéticos que partem de um único "agente representativo", mas preveem o equilíbrio maximizador entre indivíduos racionais. A mágica é retorcer os modelos com "choques imaginários" e "falhas de mercado" de modo que, exogenamente, produzam resultados econométricos aparentemente adequados aos dados recortados. A explanação teórica e a reconstituição histórica, no entanto, se perdem em meio a formalizações e racionalizações irrelevantes para entender e explicar as economias capitalistas realmente existentes.

Quanto à liberalização financeira, foi acompanhada pela explosão de crises, à medida que os países confiaram na capacidade de auto-regulação dos mercados e desmontaram a regulamentação keynesiana do sistema financeiro doméstico e os controles ao movimento internacional de capitais. O FMI agora voltou a admitir controles de capitais como no mundo anterior à década de 1980 e como na Índia e na China ainda hoje, embora o principal sócio da instituição multilateral, os EUA, vete uma defesa explícita que sequer é discutida no meio da ortodoxia brasileira.

No que tange às relações entre desigualdade e crescimento econômico, tecnocratas neoliberais legitimaram o ataque de empresários, desde a década de 1970, contra os impostos que financiavam o Estado de bem-estar social e contra os arranjos sindicais e políticos que asseguravam o aumento de salários reais. Recuperando argumentos pré-keynesianos, economistas neoclássicos apresentaram evidências episódicas para assegurar que a redução de alíquotas de impostos sobre os ricos e a "flexibilização" (queda) de salários reais e do gasto social aumentariam o crescimento econômico, o nível de emprego e a própria arrecadação tributária. Hoje o FMI admite que o aumento da desigualdade, parcialmente resultante do desmonte das políticas sociais e salariais que buscavam maior igualdade social, trouxe menos e não mais crescimento econômico.

Programas de austeridade fiscal, por sua vez, não se mostraram capazes de controlar o crescimento da dívida pública em relação ao PIB, tendendo ao contrário a aumentá-la ao provocar desacelerações ou mesmo recessões que deprimem a arrecadação tributária. Hoje, o FMI considera melhor reduzir o peso da dívida pública no PIB "organicamente", isto é, depois que o crescimento econômico seja retomado com políticas anticíclicas e, então, provoque aumento da arrecadação tributária a um ritmo superior ao do gasto público, enquanto a redução da taxa de juros diminui o peso da dívida pública no PIB. A ideia de que a contração fiscal é expansionista só não morreu no meio da ortodoxia brasileira.

A DITADURA DA AUSTERIDADE

Só a fé na hipótese de contração fiscal expansionista explica a desconsideração dos neoclássicos brasileiros em relação aos dados de queda da rentabilidade das empresas (apesar das isenções fiscais), deflação do preço das commodities e o ciclo longo de endividamento de empresas e famílias cuja reversão se iniciava em 2014. Nestas condições, tomar a parte pelo todo, o micro pelo macro, a economia doméstica ou a empresa pelo sistema complexo, implica em recomendações desastrosas de política econômica: para um empresário individual, o corte do gasto público e do salário real pode representar promessa de custos menores no futuro, sem que entenda a interação complexa por meio da qual a queda resultante da demanda agregada vai prejudicar, antes da redução de custos, as receitas e o balanço patrimonial de sua empresa.

Mais grave é que o mesmo equívoco se repita entre economistas. Sua esperança é que o investimento privado se recupere à medida que corte do gasto público acompanhe a queda da arrecadação, sem prever que, ao se defrontar com o corte da demanda gerado pela austeridade fiscal e salarial, o empresário vai destinar receitas para pagar suas dívidas e comprar títulos públicos, sobretudo se o Banco Central prometer um ciclo longo de elevação de juros.

Em um sistema complexo, a falácia de composição implica que quando todos, inclusive o governo, tentam poupar, o corte de demanda agregada frustrará o desejo de poupar e dificultará ainda mais o pagamento das dívidas. Como não perceber o desastre caso o governo e o Banco Central também sinalizem para uma grande depreciação cambial que, antes de estimular exportações, encarecerá importações e passivos externos?
Nos meses finais de 2014, já escrevíamos que a economia brasileira estava à beira da recessão. Também apontávamos a queda do preço das commodities, a operação Lava-Jato e a possibilidade de racionamento de água e energia como motivos porque um ajuste fiscal seria contraproducente ao jogar a economia na recessão que acentuaria a queda da arrecadação tributária e aumentaria o peso da dívida pública no PIB. Ao mesmo tempo, economistas neoclássicos faziam festa com o anúncio do programa de Joaquim Levy, expressa por exemplo na previsão do boletim FOCUS de que a economia se recuperaria em relação a 2014, crescendo 0,8% em 2015. A breve melhoria da confiança empresarial no final de 2014 parecia dar materialidade à crença de que, pelo menos no Brasil, a fada da confiança faria milagres.

Nunca afirmamos que foi apenas o corte severo da despesa pública, acelerado no primeiro semestre de 2015, que provocou a contração do PIB de 3,8%. Neste caso, o "conjunto da obra" que reforçou a desaceleração cíclica já em curso e jogou a economia na recessão incluiu, além das políticas monetária e cambial incensadas pela ortodoxia, o aumento de receitas por meio da elevação de preços públicos e impostos federais e estaduais, e as declarações de Levy que continuaria cortando o que fosse necessário para correr atrás da enorme queda de arrecadação e alcançar a meta fiscal irrealista, acentuando a espiral descendente que, certamente, contribuiu para aumentar a impopularidade da presidenta e as incertezas trazidas pela crise política.

Afirmamos sim que o programa fiscal seria contraproducente para sua finalidade declarada, melhorar o resultado fiscal ou, pior ainda, a relação dívida pública/PIB. Estudos econométricos apontam que o multiplicador fiscal, o montante que a renda nacional cresce (ou cai) para cada Real gasto (ou eliminado) pelo governo, se amplia em uma recessão, podendo chegar a um valor maior do que 3,5, sobretudo se cortar o investimento público e prejudicar a confiança no futuro de empresas e famílias. A sensibilidade da arrecadação tributária a uma recessão também é maior, de modo que a tentativa do governo de aumentar sua poupança tende a se frustrar à medida que o multiplicador fiscal se eleva e a arrecadação despenca. Não se estimou o esforço tributário de Estados e municípios, mas o da União chegou a pelo menos 0,44% do PIB, com ganho de carga tributária de apenas 0,12% em 2015 (e com IRPF de 2014!).

Ou pior, uma política que contribui para derrubar o PIB não tem como reduzir a relação dívida/PIB, tanto mais se a política de juros altos colabora para aumentar o numerador e reduzir o denominador. Como dizia Keynes, se há algum momento propício para a austeridade, esse é o boom e não a recessão. O ônus da prova de que o contrário vale para o Brasil, mas não no resto do mundo, continua com os defensores de primeira hora da austeridade expansionista.

Eles precisam provar, também, que a concentração da renda aumenta a capacidade de recuperação da economia brasileira, que acabou de passar por um longo ciclo de crescimento sob o impulso da desconcentração da renda e da incorporação de trabalhadores pobres aos mercados de consumo. Joaquim Levy afirmou em junho de 2015 que havia gente que não queria entrar mais no mercado de trabalho, mas voltaria com a recessão a procurar emprego, o que seria bom pois "não existe crescimento sem aumento da oferta de trabalho."

Em debate que tivemos em outubro de 2015 com Lisboa e Pessôa, este afirmou que "quanto mais os salários reais caírem, mais rápido e indolor o ajuste vai ser. Em maio, junho, fiquei super feliz porque as expectativas estavam mostrando uma queda de salário real de 5%". Ora, Keynes já mostrara há décadas que, assim como o corte do gasto público, a queda de salários e do nível de emprego também reduz os lucros agregados à medida que as vendas caem. Mesmo prevendo salários e custos menores, os capitalistas não investem sem demanda. E, paradoxalmente, não lucram se não gastam.

O resultado é que a queda de receitas torna as empresas superendividadas, com risco crescente de inadimplência que, por sua vez, retrai ainda mais o crédito bancário. Ou seja, quando todos poupam para pagar suas dívidas ao mesmo tempo, tanto a dívida pública quanto a privada aumentam em relação ao PIB em queda.

Curiosamente, muitos dos economistas que diziam não haver espaço fiscal para uma política anticíclica no final de 2014 aceitaram a primeira revisão da meta de déficit fiscal para R$ 170,5 bilhões em 2016 pelo governo interino, nos fazendo supor que não eram tecnicamente equivocadas, mas politicamente motivadas, as censuras àqueles que, como nós, criticavam a resistência do ministro Levy a revisar a meta fiscal irrealista em 2015.

A solução do novo governo Temer é, contudo, dobrar a aposta na austeridade, tornando-a permanente com a PEC 241, que impede a ampliação real do gasto público. Se aprovada, levará a cortes radicais nas leis que preveem ampliação da cobertura de bens e serviços públicos, inclusive educação e saúde, para poupar recursos para o pagamento da dívida pública.

Macroeconomicamente, é um mau negócio. O gasto social tem um grande multiplicador fiscal, conservadoramente estimado pelo IPEA acima de 1,5, mas o multiplicador do pagamento de serviços da dívida pública é estimado pouco abaixo de 0,8, dado o fato que seus portadores são, em geral, liberados de preocupações imediatas de consumo.

Embora mesmo o FMI admita que a melhor maneira de controlar o peso da dívida pública no PIB é estimular o PIB e reduzir a taxa de juros, as atas do Copom sob comando de Ilan Goldfajn parecem condicionar a queda da taxa de juros à "continuidade dos esforços para aprovação e implementação (das) reformas fiscais", leia-se a PEC 241.

O problema disso, primeiro, é que o déficit público não resulta de gastança, mas de queda de arrecadação, logo a inflação não resulta de excesso de demanda pública a controlar com juros altos. Segundo, os juros elevados e inexplicáveis são o principal determinante da ampliação da dívida pública, gerando custos que a austeridade do gasto social e do investimento público é incapaz de controlar, tanto mais porque os cortes limitam o crescimento do PIB.

Politicamente, é uma impostura: pesquisas de opinião mostram que a imensa maioria da população (até 98%) aprova a universalidade e a gratuidade da saúde e da educação pública. No mundo acadêmico, além de injusta, a austeridade é vista como contraproducente tecnicamente. O maior risco atual à democracia brasileira é que instituamos uma ditadura de tecnocratas que legitimam, com retórica cientificista, mudanças no pacto social inscrito na Constituição Federal com base em argumentos desatualizados empírica e teoricamente.

LUIZ GONZAGA BELLUZZO, 73, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS, 45, é professor associado do Instituto de Economia da Unicamp. 

domingo, 18 de setembro de 2016

94 - Cultura e raça

 RELAÇÃO ENTRE CULTURA E RAÇA

NICHOLAS WADE - Folha de São Paulo (18/09/2016)  

Abaixo, um trecho de Uma Herança Incômoda, de Nicholas Wade, que será lançado no final do mês pelo selo Três Estrelas. A obra se baseia em estudos sobre as relações entre genética, raças e instituições. Embora contra a eugenia, o autor foi severamente criticado, até mesmo por autores em que o livro se apoia.

A visão que os economistas geralmente sustentam do desenvolvimento econômico é que as pessoas têm pouco ou nada a ver com ele. Como todos os humanos são unidades idênticas que respondem da mesma maneira a incentivos, ao menos na teoria econômica, se um país é pobre e outro rico, a diferença não teria nenhuma ligação com as pessoas, devendo residir nas instituições ou no acesso a recursos. Basta uma oferta suficiente de capital e a imposição de instituições favoráveis aos negócios, e um robusto crescimento econômico certamente se seguirá. Fortes evidências desse efeito parecem ter sido apresentadas pelo Plano Marshall, que ajudou a reviver as economias europeias após a Segunda Guerra Mundial.

Com base nessa teoria, o Ocidente gastou cerca de 2,3 trilhões de dólares em assistência ao longo dos últimos cinquenta anos, sem conseguir melhorar os padrões de vida da África. Será que alguma coisa está errada na teoria? E se as unidades humanas das economias mundiais não forem tão completamente fungíveis quanto supõe a teoria econômica, com a consequência de que variações em sua natureza, como sua preferência temporal, sua ética de trabalho e sua propensão à violência, têm algum peso nas decisões econômicas que elas tomam?

Para explicar a discrepância entre teoria e prática, alguns estudiosos interessados em desenvolvimento começaram a sugerir que talvez, no fim das contas, as pessoas façam diferença. A sugestão deles é que a cultura desempenha um papel importante no comportamento econômico das pessoas.

No começo dos anos 1960, Gana e a Coreia do Sul tinham economias e níveis de PIB per capita similares. Cerca de trinta anos depois, a Coreia do Sul tornou-se a 14ª maior economia do mundo, exportando manufaturas sofisticadas. Gana estagnou, e o PIB per capita é quinze vezes menor do que o da Coreia do Sul. "Pareceu-me que a cultura tinha de ser uma parte importante da explicação", observou o cientista político Samuel Huntington ao considerar essa divergência de destinos econômicos.

"Os sul-coreanos valorizavam a poupança, o investimento, o trabalho duro, o estudo, a organização e a disciplina. Os ganenses tinham valores diferentes."

Até o economista Jeffrey Sachs, proponente incansável do aumento da assistência, admitiu a possibilidade de que a cultura possa desempenhar algum pequeno papel nas diferenças de desenvolvimento econômico. Ainda que "as grandes divisões entre países ricos e países pobres tenham a ver com geografia e com política", escreve, "há, de fato, sugestões de fenômenos mediados culturalmente. Dois são evidentíssimos: o desempenho abaixo do esperado dos países islâmicos do norte da África e do Oriente Médio e o grande desempenho de países tropicais na Ásia oriental que possuem uma importante comunidade da diáspora chinesa".

Porém, se a cultura consegue explicar o desempenho econômico em alguns poucos grupos, ela poderia ter um papel importante em todas as economias. Os estudiosos temem estudar mais o assunto porque não estão realmente usando a cultura apenas em seu sentido aceito de comportamento aprendido. Antes, trata-se de um termo abrangente que inclui referências possíveis a um conceito que eles não ousam discutir, a possibilidade de que o comportamento humano tenha uma base genética que varia de uma raça para outra.

O sociólogo Nathan Glazer, por exemplo, quase admite que a cultura e a raça são variáveis explicativas válidas, que, no entanto, não podem ser usadas. Escreve ele:

"A cultura é uma das categorias explicativas menos favorecidas no pensamento atual. A menos favorecida, claro, é a raça. Preferimos não mencioná-la nem usá-la hoje em dia, embora pareça haver uma ligação entre raça e cultura, talvez apenas acidental. As grandes raças, no todo, são marcadas por culturas diferentes, e essa conexão entre cultura e raça é um motivo do nosso desconforto com explicações culturais."

Diversos comportamentos sociais que os economistas identificaram como obstáculos ao progresso poderiam perfeitamente ter base genética. Um deles é o raio de confiança, que pode estender-se a estranhos nas economias modernas, mas que, nas pré-modernas, fica limitado à família ou à tribo. Escreve Daniel Etounga-Manguelle, economista camaronês:

"Vistas por dentro, as sociedades africanas são como um time de futebol no qual, como resultado de rivalidades pessoais e da ausência de espírito de equipe, um jogador não passa a bola para outro por medo de que este faça um gol. Como podemos ter esperança de vitória? Nas nossas repúblicas, as pessoas de fora do "cimento" étnico têm tão pouca identificação umas com as outras que a simples existência do Estado é um milagre."

A disposição de poupar e de retardar a gratificação é um comportamento social que Clark vê aumentar gradualmente na população inglesa nos 600 anos que antecedem a Revolução Industrial. Por outro lado, a propensão para poupar parece consideravelmente menor em sociedades tribais. Isso pode ocorrer, em grande medida, porque essas sociedades são mais pobres; cada qual vai poupando mais à medida que enriquece. Porém, a aversão a poupar em sociedades tribais está associada a uma forte propensão ao consumo imediato. Citando outra vez Etounga-Manguelle:

"Por causa da relação que os africanos têm com o tempo, poupar para o futuro têm prioridade menor do que o consumo imediato. A menos que haja alguma tentação de acumular riqueza, aqueles que recebem um salário regular precisam financiar os estudos de irmãos, de primos, de sobrinhos e de sobrinhas, alojar os recém-chegados e financiar a série de cerimônias que preenchem a vida social."

Há indícios razoáveis de que a confiança tem base genética, embora ainda esteja por ser verificado se ela varia significativamente entre grupos étnicos e raças. Os aspectos da cultura que alguns economistas começaram a considerar relevantes para a performance econômica poderiam perfeitamente ter base genética, mesmo que isso ainda precise ser provado ou mesmo investigado com seriedade. O comportamento social, qualquer que seja seu nível de fundamentação cultural ou genética, pode ser modulado pela formação e pelos incentivos; por isso, um entendimento melhor de seu papel na performance econômica pode ter consequências práticas. Aqueles que ignoram a cultura também ignoram "uma parte importante da explicação de por que algumas sociedades ou grupos étnico-religiosos têm melhor desempenho do que outros no que diz respeito a governo democrático, justiça social e prosperidade", escreve o especialista em desenvolvimento Lawrence Harrison.

O elo entre raça e cultura fica evidente no famoso experimento natural iniciado pelas migrações humanas. Membros de várias raças migraram para diversos ambientes, mas mantiveram seus comportamentos peculiares em muitos países ao longo de muitas gerações. O economista Thomas Sowell documentou muitos desses episódios em sua trilogia sobre raça e cultura.

Consideremos o caso dos imigrantes japoneses nos Estados Unidos. Eles chegaram como trabalhadores agrícolas no Havaí ao final do século 19 para trabalhar na lavoura de cana e depois mudaram-se para o continente. A primeira geração era de agricultores e de trabalhadores domésticos e conquistou fama por seu esforço. A segunda geração, com a vantagem da formação universitária americana, buscou aprender profissões. Em 1959, a renda familiar dos japoneses americanos era igual à dos europeus americanos, e em 1990 era 45% maior.

No Peru, os trabalhadores japoneses conquistaram fama por seu esforço, por sua confiabilidade e por sua honestidade, tornando-se bem-sucedidos no setor agropecuário e na indústria. No Brasil, os japoneses foram considerados eficientes, industriosos e ordeiros. À medida que prosperavam, entraram no setor bancário e na indústria e chegaram a possuir terras, no Brasil, em quantidade equivalente a 75% do território do Japão. Nessas três culturas diferentes, os japoneses tiveram sucesso graças a hábitos diligentes de trabalho, com a primeira geração composta de agricultores prodigiosos e a segunda passando ao mundo profissional.

A diáspora chinesa compunha-se de imigrantes igualmente produtivos, em especial no Sudeste Asiático, onde a maioria trabalhou infatigavelmente e ergueu empresas. A maioria dos imigrantes chineses começou como colonos em fazendas, com uma capacidade enorme para trabalhar duro. Na Malásia, os chineses que realizavam trabalho não qualificado junto com os malaios nas plantações de borracha produziam duas vezes mais. Já em 1794, um relatório britânico sobre o assentamento malaio de Penang dizia que os chineses eram "a parte mais valiosa dos nossos habitantes".

As empresas chinesas eram tipicamente familiares, tanto no capital quanto no gerenciamento, mesmo quando se tornavam corporações de tamanho considerável. Elas se aferravam a seus próprios valores e à sua ética de trabalho entre populações que muitas vezes tinham uma visão mais relaxada de como se deveria passar o tempo.

No Caribe, escreve Sowell, os chineses "permaneceram à parte do sistema de valores da sociedade das Índias Ocidentais –não foram afetados pelos padrões creoles de consumo ostensivo, de distribuição dadivosa, de perdão de dívidas e outros traços que operam contra o sucesso empresarial".

Pequenas populações chinesas na Tailândia, no Vietnã, no Laos e no Camboja vieram a ter um peso desproporcional nas economias desses países. Elas dominaram a próspera economia de Cingapura e foram tão produtivas na Indonésia que seu sucesso provocou inveja e repetidos massacres. Em 1994, os 36 milhões de chineses que trabalhavam no exterior produziam tanta riqueza quanto o bilhão de chineses na China.

A imigração significativa de chineses para os Estados Unidos começou em 1850, com a corrida do ouro na Califórnia. Com frequência, os chineses só tinham permissão para garimpar aquelas áreas que os demais consideravam não valer a pena, mas mesmo assim eles persistiram e floresceram onde outros não conseguiram. Os trabalhadores chineses construíram boa parte da estrada de ferro Central Pacific e chegaram a compor 80% de todos os trabalhadores agrícolas da Califórnia.

Seu sucesso provocou uma série de leis discriminatórias defendidas por aqueles que não conseguiam competir com eles. Excluídos de uma indústria após a outra, em 1920 mais da metade de todos os chineses nos Estados Unidos trabalhavam em lavanderias e em restaurantes. Assim que as leis adversas foram revogadas, uma geração mais jovem de sino-americanos começou a frequentar a faculdade e a obter trabalhos profissionais. Em 1959, a renda familiar chinesa estava no mesmo nível da média americana, e em 1990 a sua renda familiar média era 60% mais alta do que a dos americanos não asiáticos.

NICHOLAS WADE, 74, jornalista britânico, trabalhou no "The New York Times".

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

93 - Ditaduras com disfarçe democrático

DITADURAS SOCIALISTAS COM VERNIZ DEMOCRÁTICO

                                                                                                  Uta Thofern, DW (03/08/2016)

Em maio de 1945, o político Walter Ulbricht lançava a diretiva para a fundação da República Democrática Alemã (RDA): "Tem que parecer democrático, mas nós precisamos estar com tudo nas mãos."

E, no entanto, bem se sabe no que a coisa deu. Já ao lançar o slogan da pseudodemocracia, ele mandou o Grupo Ulbricht, controlado pela União Soviética, para combater supostos adversários, em vez de construir novas estruturas na Berlim devastada.

Ulbricht foi a figura mais marcante de quase todo o primeiro quarto de século da RDA, a ditadura socialista da Alemanha. Esse Estado não conseguiu concluir um segundo quarto de século.

No entanto, a tática comunista de despistamento convenceu durante muitos anos, até que, em 1989, houvesse suficientes cidadãos fartos com o sistema para fazer cair o Muro de Berlim. E não eram apenas idealistas que acreditavam na própria revolução e queriam erguer uma Alemanha nova e melhor, após a ditadura nazista. Também alemães perfeitamente normais, cansados da guerra, tinham esperança de um futuro melhor no socialismo.

E mesmo na ocidental República Federal da Alemanha (RFA), até o fim a RDA tinha adeptos numerosos, que acreditavam seriamente no infindável "caminho para o comunismo", e o chamavam de democrático.

Hoje, também na Venezuela é cada vez menor o número dos verdadeiros partidários do socialismo em sua variante bolivariano-chavista. A devastadora crise de abastecimento atinge com mais força justamente os grupos mais pobres da população, que de início se beneficiaram com as reformas bolivarianas – enquanto os mais abastados pelo menos ainda conseguem comprar medicamentos no exterior.

Quanto mais o governo fracassa, com suas receitas do século passado, mais bizarras se tornam suas contorções pseudodemocráticas.

O comitê eleitoral dominado por chavistas acha sempre novos pretextos para adiar o referendo pela deposição do presidente Nicolás Maduro. Numa hora a jornada de trabalho precisa ser reduzida devido à crise de energia; em outra fala-se de fraude eleitoral em massa; em outra, de prazos não cumpridos.

O fato de agora, finalmente, o governo ter reconhecido as assinaturas necessárias à primeira fase do referendo, só denota a intenção de manter a fachada de democracia. Pois, já no mesmo dia, foi anunciada mais uma prova – associada à declaração inequívoca de que o referendo não transcorrerá antes do próximo ano.

A essa altura, Maduro ainda poderá ser derrubado, mas como só estarão faltando menos de dois anos para o fim de seu mandato regular, não haveria eleições antecipadas, mas sim o vice-presidente socialista dele como sucessor.

A separação dos poderes há muito já foi abolida na Venezuela. Desde a esmagadora vitória da oposição nas urnas, a Assembleia Nacional está paralisada, todas as demais instituições estão firmes nas mãos dos chavistas.

Contudo a quimera democrática ainda funciona no exterior. Enquanto os venezuelanos passam fome e pessoas morrem por falta de medicamentos, a comunidade internacional aposta em laboriosas mediações. Contanto que a aparência seja democrática, não há por que se alterar.

O mesmo vale para a Nicarágua. O resto do mundo não dá a mínima para o fato de o presidente Daniel Ortega ter acabado de reintroduzir o sistema unipartidário, ao excluir a oposição da Assembleia Nacional. Afinal, os sandinistas de Ortega apresentaram como justificativa algumas resoluções que eles mesmos redigiram.

O homem que, no século passado, traiu sua própria revolução sandinista, utiliza agora sua segunda chance democrática para abolir a democracia. Nas "eleições" de novembro, a maioria de Ortega está garantida.

No palco internacional, os dirigentes da Nicarágua e Venezuela podem contar com a mesma mistura de idealismo ingênuo e indiferença que também cuidaram durante anos para que a RDA mantivesse sua reputação e respeito enquanto Estado.

Em seguida à queda do Muro, social-românticos desiludidos de todo o mundo encontraram uma nova pátria espiritual nas revoluções bolivarianas da América Latina. O apoio deles a todos os experimentos socialistas, até o mais amargo fim, é coisa certa. E os realistas?  Praticam realpolitik, a política prática – com a Turquia, com a Rússia, com a China. Mas também em 1989 foi assim, e isso dá esperanças.

http://www.dw.com/pt/opini%C3%A3o-ditaduras-socialistas-com-verniz-democr%C3%A1tico/a-19446962



domingo, 31 de julho de 2016

92 - Novos rumos da globalização

Mundo passa por um redesenho desglobalizatório, defende diplomata