domingo, 3 de abril de 2016

86 - A CRISE BRASILEIRA

A CRISE BRASILEIRA

MARCUS ANDRÉ MELO in FOLHA DE SÃO PAULO (13/03/2016)  

Em seu livro "Passado Imperfeito: Um Olhar Crítico sobre a Intelectualidade Francesa no Pós-Guerra", Tony Judt chama a atenção para a irresponsabilidade moral da esquerda europeia quando os crimes de Stálin vieram à tona. A defesa do indefensável por gente como Sartre, Garaudy etc. teria levado à derrocada da intelligentsia francesa no resto do mundo porque ela teria perdido completamente a respeitabilidade.

Temo que algo semelhante possa acontecer com a intelligentsia brasileira –não a "tola", mas a "sabida". A inteligência "tola" –Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro– levou recentemente patadas no estilo "pastor chuta a santa", mas terá longa sobrevida. A "sabida" tem investido contra o império da lei e seus agentes –e não só no Brasil. Qual será seu lugar na história?

O Brasil enfrentaria uma tempestade perfeita, argumentei há mais de dois anos em uma palestra no National Endowment for Democracy (Washington, DC). Ela resultaria da raríssima combinação –um cisne negro– de escândalo ciclópico de corrupção, colapso econômico e um enfraquecimento inédito do Executivo.

Quando a Lava Jato foi deflagrada, a imagem a que recorri foi a de um "tsunami informacional". As pesquisas sobre a questão oferecem evidências robustas de que a influência da informação acerca da corrupção na opinião pública é condicional: é necessário que um limiar seja atingido para que ela se torne inteligível e crível. O tsunami tem poder de desvelar o "revólver fumegante" na corrupção. E mais: há um efeito interativo entre a economia e a informação sobre a corrupção que potencializa essa influência quando a primeira vai mal.

A intelligentsia "sabida" investe também contra o combate à corrupção. Mas, como mostram amplamente as pesquisas internacionais, a politização da corrupção não é uma questão de esquerda ou direita: ela é um movimento contra o incumbente. Se este é Vargas, o tema vai ser mobilizado contra ele; se for o regime militar, a denúncia volta-se para o regime. Ulysses Guimarães denunciava os "enxundiosos Faruks da corrupção" que estariam em toda parte: Capemi, Coroa Brastel etc.

No poder, Maluf tornou-se o símbolo da predação. A corrupção foi tema central da luta contra ditaduras, de Ferdinand Marcos a Anastasio Somoza; e, na França, do escândalo do canal do Panamá na 3ª República a Nicolas Sarkozy.

O argumento de que o combate à corrupção é uma invariante histórica –"repúblicas do Galeão" e seus "Ersatzs" e reencarnações– acionada quando emergem governos populares não resiste ao contrafactual mais elementar.

O segundo pé da tempestade perfeita –a debacle econômica– não é óbvio: por que um governo que havia dado continuidade ao tripé econômico anterior desviou de rota? Esse desvio resultou de uma "bolha política", conceito que tomo emprestado de "Political Bubbles: Financial Crisis and the Failure of American Democracy", de Nolan McCarty, Keith T. Poole e Howard Rosenthal.

A bolha é a exuberância política irracional, produto de uma combinação explosiva de crenças, instituições e interesses. "Por trás de toda bolha de mercado há uma bolha política", afirmam os autores. Da mesma maneira que alguns ativos encontram-se supervalorizados devido à exuberância irracional, na política uma escalada de crenças dá sustentação a políticas sem qualquer fundamento e leva ao colapso.

BONANÇA

A bolha política, no Brasil, foi engendrada por uma combinação de dois fatores: de um lado, a nova estrutura de incentivos produzida pela descoberta do pré-sal, que levou à maior capitalização de mercado da história do capitalismo, a da Petrobras, e à difusão da crença em uma bonança generalizada; e, de outro, a relegitimação de instrumentos de intervenção na economia nos países avançados, em virtude da crise de 2008.
O que foi temporário nessas economias tornou-se, aqui, permanente –mais ainda, foi perigosamente alavancado. A exuberância política irracional resultante levou à formação de uma aliança entre Estado e empresas –interesses– em escala inédita, ancorada em um discurso triunfalista que levou o BNDES a quadruplicar sua carteira.

Quando deu com os burros n'água, a perspectiva de repetição da reversão de políticas do presidente Lula levou o governo Dilma a praticar o maior estelionato já registrado em democracias. Mas não havia uma "Carta aos Brasileiros" antecipando a conversão ao mercado. E mais: a reversão ocorria em relação ao seu próprio governo, e não a um governo de coloração ideológica distinta, levando à lona a popularidade presidencial.

A nossa tempestade perfeita é produto de poucos choques (pré-sal, neointervencionismo) e numerosas opções por políticas erradas.

E as instituições políticas? Afirmar que nossa crise é um cisne negro equivale a dizer que a magnitude da crise não é explicável unicamente por algum atributo de nosso desenho institucional; antes, há um conjunto de fatores claramente institucionais a alimentar a crise. Que fatores são de um tipo e de outro?
Dizer que nossas instituições estão funcionando, mas que não produzirão soluções, é uma platitude. Decerto a crise não é como descreveria Juan Linz em seu estudo clássico sobre a instabilidade do presidencialismo: não há o confronto Executivo-Legislativo previsto por esse autor.

A presidente entregou não só os anéis mas também os dedos, em uma espécie de semipresidencialização informal. As instituições judiciais e de controle estão funcionando como antecipado pelos constituintes em 1988. Ao dotá-las de enormes prerrogativas, elas tornaram-se autônomas e robustas.

O Executivo também foi objeto de enorme delegação de poder, e os freios e contrapesos fortalecidos foram vistos como instrumentos que pudessem coibir o abuso de poder presidencial. Aí está o terceiro pé da tempestade: o presidencialismo precisa de um presidente para funcionar. Na ausência de um, haverá paralisia decisória em qualquer variante constitucional imaginável. Se o capital político do presidente é nulo e seu manejo da coalizão é desastroso, para dizer o mínimo, instala-se a crise.

Nunca houve na história um presidente cujo partido tivesse apenas 11% das cadeiras no Parlamento e que tivesse popularidade de um dígito. Mas o PT perdeu cadeiras porque se descolou do eleitorado. A intensidade do estelionato eleitoral e a corrupção revelada no país são inéditas do ponto de vista comparativo. Todavia muito pouco ou nada disso resulta do nosso desenho constitucional.

Por outro lado, há um conjunto de fatores –estes sim– de natureza institucional que alimentam a crise, mas não são sua causa imediata. Nunca houve um Legislativo com um número efetivo de partidos políticos tão elevado: um escore de 13,4 em 2014, engendrando a necessidade perene de construção de coalizões superdimensionadas. A fragmentação legislativa chegou ao número máximo matematicamente possível em 7 Estados brasileiros: neles, todos os parlamentares provêm de partidos diferentes. Isto é institucional e se deve, entre outras coisas, à magnitude brutal de nossos distritos eleitorais. Também o é a legislação sobre financiamento de campanhas.

A democracia brasileira está ameaçada quando a intelligentsia "sabida" se volta contra as instituições. E mais grave: quando o faz invocando uma noção de representação política simbólica.

Como demonstrou Hanna Pitkin, esse tipo de representação é a negação da "accountability". Um líder representa algo em virtude "do que é, e não do que faz". A responsabilização democrática se define pelo desempenho –"o atuar no interesse de"–, o que pressupõe o estabelecimento de um conjunto de ações desviantes que, se concretizadas, levariam o representante a ser punido pelo eleitor.

Em uma liderança simbólica, esse conjunto não é enumerável porque, por construção, quem é símbolo não pode deixar de sê-lo. Isso também vale para a chamada representação descritiva, na qual a boa representação é definida pela similitude entre representante e representado. O bom líder seria então aquele que detivesse os atributos do eleitor médio.

Essa noção de representação, como sublinha Pitkin, dispensaria eleições; bastaria uma amostra aleatória para a escolha do representante. E viola a "accountability" democrática: o "eleitor típico" pode simbolizar o eleitorado, mas não será um representante.

A representação é fundamentalmente performativa, fundada em uma delegação condicional. Pertence à mesma classe de enunciados antidemocráticos o argumento "sabido" que diz que um símbolo não pode ser preso; só a não culpabilidade pode legitimamente ser invocada nesse caso.

MARCUS ANDRÉ MELO é professor titular de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco e foi professor visitante na universidade Yale e no MIT.


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