domingo, 23 de junho de 2013

50 - As Jornadas de Junho (Parte V)


Pessoal, um outro bom texto do jornalista Reinaldo Azevedo, do seu blog no site da Veja, sobre os protestos das últimas semanas. Seguem trechos adaptados do texto original.


Não posso, contra tudo aquilo que penso, assentir com práticas que, se generalizadas e tornadas um norte politico, ético e moral, conduziriam o país a um mal maior do que aquele que se propuseram a combater. Ainda que tais procedimentos possam atingir em cheio figuras e partidos que execro, essa seria uma batalha sem princípios — e é contra os meus princípios adotar os métodos daqueles a quem combato. Eu não cultivo a humildade socrática e jamais diria “só sei que nada sei”. Prefiro o que poderia ser, talvez, uma divisa aristotélica: SÓ NÃO SEI O QUE NÃO SEI. O fato de eu, como toda gente — incluindo governo e oposição —, não saber direito o que está em curso nem qual será a forma do futuro não implica que eu deva esquecer o que sei. Entenderam?

O fato de ignorarmos as causas exatas de um determinado fenômeno não pode nos levar a nos colocar diante deles como uma tabula rasa, de sorte a nos deixar conduzir pelo puro empirismo. O fato é que sei algumas coisas. Sei, por exemplo, que não existe política fora da política. Sei, por exemplo, que não existe saída civilizada fora da representação democrática. Sei, por exemplo, que a imposição coletiva de descontentamentos individuais ou de grupos nem protege o individualismo nem cria coletividades mais tolerantes. Sei, por exemplo, que os oportunistas sempre se beneficiam da depredação dos valores institucionais. Só não sei o que não sei. Mas sei o que sei.

Seria tolo ignorar o que aprendi até aqui e me deixar arrastar pela voragem das ruas contra as minhas convicções. E entendo, sim, por que muita gente boa se entusiasma.

Eu, que desconfio de coletivos e coletivismos; que repudio os aiatolás que se arvoram em juízes do pensamento alheio; que sou um fanático da distinção entre as esferas pública e privada da vida, eu não posso — e não vou — dar piscadelas àqueles que acreditam que podem impor aos outros a sua vontade; que a rua, qualquer rua, pode ser apropriada como espaço de reivindicação de maiorias ou minorias que pretendem falar em nome da causa geral.

E eu não tenho o menor receio de ser contra a maiorias. Nunca tive. Pesquisa Datafolha, segundo a Folha deste domingo, aponta que 66% dos paulistanos acham que manifestações de rua devem continuar; 34% acham que não. Que elas continuem, aprovo. Que tomem qualquer via pública, quando der na cabeça das lideranças, aí não. Nesse caso, estou com os 34%. Eu acho que o mundo será melhor quanto mais pudermos, cada um de nós, cuidar de nossa própria vida e da vida da nossa família. “Então não existem demandas públicas, Reinaldo?” Existem! Por isso existe a praça. Segundo o Datafolha, 78% dos paulistanos apoiam a ocupação da Paulista. É? Pois eu estou com os 28%, então. Não posso negar o que sei. E EU SEI QUE NEM MESMO AS MAIORIAS TÊM O DIREITO DE CASSAR O DIREITO CONSTITUCIONAL DE IR E VIR. E se todos aqueles que tiveram algo a dizer ou alguma demanda a apresentar ao estado decidirem fazer o mesmo? Qual é o limite? Quem esses juízes do espaço público acatam como juiz? “Ah, mas o direito de se expressar e se reunir também está na Carta!” Eu sei e apanhei bastante para conquistá-lo. Reitero: a praça está à disposição. Por mim, o Vale do Anhangabaú, por exemplo, pode ficar reservado só para manifestações.

Aí eu vou lá levar o meu cartaz. Erguerei um contra a corrupção, contra a PEC 37, contra o eventual esforço de transformar o julgamento do mensalão num pastelão, contra a inércia do Congresso, contra a incompetência no gerenciamento da saúde, contra a morte da Baleia (a cadela de “Vidas Secas”), contra comida japonesa, contra o Bolero de Ravel, contra a vírgula entre sujeito e predicado, contra o risco de que as orações subordinadas sejam extintas em nossa imprensa… Eu tenho demandas imensas.

Mas não me peçam…
Mas não me peçam para aplaudir, porque não vou, uma onda que professa seu ódio à política sob o pretexto de que pretende melhorá-la.
Não me encanta, de modo nenhum!, esse ataque generalizado à política como morada exclusiva da falta de ética e da ladroagem. Exclusiva não é. Mas isso também não resolve, é claro. Basta que seja para merecer um protesto. Mas, então, que se melhore a política, ora!

Nos protestos havidos em Brasília, havia muita gente gritando contra Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, por exemplo. Mas é de uma estupidez sem par chamar de pacífica uma manifestação que toma o teto do Congresso, com cartazes convertidos em tochas. Eu não seria eu se não escrevesse tudo. E, então, vou escrever tudo: se o diabo me obrigasse a escolher entre a democracia que temos, com Renan Calheiros lá, sendo quem é, e os que acreditam que podem sapatear sobre o teto do Parlamento, eu teria de escolher Renan. O motivo é muito simples: no sistema que temos, eu, ao menos, posso escrever o que penso sobre o presidente do Senado… Escrevi contra as manifestações e recebi centenas de ameaças de morte e espancamento. “A culpa não é dos milhares que se manifestam!” Nem eu estou dizendo que seja. Mas é preciso, sim, cuidar dos sentimentos que a gente mobiliza quando faz determinadas reivindicações.

O ódio à política — e, não há como negar, há uma parte da imprensa encantada com isso (vou escrever a respeito; lembrem-se que esta é apenas a primeira parte deste texto) — nos conduz a formas pré-políticas de resolução de conflitos: ou à guerra de todos contra todos ou à má política. Em seu péssimo pronunciamento, a presidente Dilma anunciou a disposição de levar para o Palácio do Planalto os tais movimentos sociais. Como serão usados? Serão tratados como supostos representantes do povo, numa espécie de “by pass” no Congresso? Com que legitimidade? Eu não quero uma democracia tutelada por conselhos populares, formados por pessoas que outorgam a si mesmas o poder da representação.

Encerro dando uma pista do que virá na parte 2. Anotem aí: dez anos de ataque sistemático à ordem constituída por meio da depredação de instituições e valores — Congresso, Judiciário, imprensa, Polícia, Forças Armadas — não poderiam resultar numa coisa muito boa.

Texto integral em http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/

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