terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

19 - A Revolução Egípcia (I)

Pessoal, seguem dois textos bem interessantes sobre os últimos acontecimentos no Egito. O primeiro texto trata da Irmandade Muçulmana, o principal grupo de oposição ao (ex) regime de Mubarak. O segundo texto é uma entrevista com o escritor egípcio Tarek Osman. Ambos saíram na edição eletrônica da Veja do dia 22 de fevereiro de 2011 (www.veja.abril.com.br)

Texto I
Irmandade Muçulmana: os fundamentalistas contra Mubarak
Maior e mais antigo grupo de oposição do Egito diz ter abdicado da violência, mas alguns membros continuam a apoiar terroristas pelo mundo árabe
Em 18 dias de intensos protestos nas ruas do Egito, representantes do grupo Irmandade Muçulmana fizeram coro com outros manifestantes pedindo a renúncia do presidente do país, Hosni Mubarak. No dia 11 de fevereiro, a "voz das ruas" prevaleceu e o ditador renunciou, deixando nas mãos do Exército a tarefa de governar até as eleições e abrir caminho para um regime democrático no país. Diante do receio dos ocidentais de que os fundamentalistas ameaçariam tal transição, membros da Irmandade afirmaram que não apresentarão um candidato à Presidência, porém anunciaram a formação de um partido político. Mas, afinal, em que consiste o movimento, quem são seus integrantes e qual sua força e participação nos recentes protestos?

A Irmandade Muçulmana é a maior e mais antiga organização islâmica do Egito e principal grupo opositor ao governo de Mubarak - apesar de nunca ter chegado a ser de fato um partido político. Fundado por Hassan Al Banna, em 1928, com o objetivo de espalhar os preceitos do Islã, o movimento teve suas ideias disseminadas rapidamente e, no fim da década de 1940, estimava-se que possuísse 2 milhões de seguidores no Egito. Logo o movimento ganhou ramificações em outras nações árabes, como a Síria e o Iraque. Em meados da década de 1950, a ascensão do teólogo Sayyid Qutb como liderança pôs a Irmandade Muçulmana na trilha do radicalismo. Qutb foi e continua sendo inspiração para grupos como o Hamas (palestino), o Hezbollah (libanês), e mesmo para a rede terrorista Al Qaeda - organizações às quais a Irmandade presta ajuda financeira.
Apesar de seus porta-vozes afirmarem ter adotado o caminho da moderação e da renúncia à violência, o movimento desperta temor e desconfiança no Egito e no Ocidente. Enquanto diz apoiar princípios democráticos, um de seus objetivos ainda é criar, gradualmente, um estado regido pela lei islâmica da Sharia. Seu mais conhecido slogan é: “O Islã é a solução”. Banido várias vezes pelo governo egípcio ao longo da história, o grupo ainda assim se infiltrou no parlamento com candidatos independentes que defendiam, além da liberalização da legislação partidária, a instauração das leis islâmicas no país. Na década de 1980, com a chegada de Mubarak ao poder, a Irmandade apostou em alianças com o partido Wafd, em 1984, e com os partidos dos trabalhadores e dos liberais, em 1987, tornando-se a principal força de oposição no Egito. Porém, em todos esses anos, assim como nos subsequentes, não conseguiu aprovar projetos de seu interesse.
Apenas nas eleições de 2005 o grupo voltou a ganhar expressão, alcançando a sua melhor marca: candidatos aliados independentes ganharam 20% das cadeiras da Assembléia Nacional. Embora não representasse uma ameaça imediata, diante das rigorosas leis impostas por Mubarak, o resultado surpreendeu o presidente por demonstrar a força do movimento. O governo logo lançou mão de novas medidas contra a Irmandade, detendo centenas de seus membros e instituindo um conjunto de reformas legais para sufocá-la. A constituição foi reescrita para estipular que nenhum tipo de atividade política poderia ser baseada na religião. Candidatos independentes foram proibidos de concorrer à presidência, e leis deram vastos poderes às forças de segurança para deter pessoas e desfazer reuniões políticas. Nas eleições parlamentares de novembro de 2010 (certamente manchadas por fraudes), 80% das cadeiras da Assembléia ficaram com o partido governista. A Irmandade não conseguiu um assento sequer.
Apoio e adesão - Sufocados por décadas de repressão, os grupos opositores possuem uma base popular restrita no Egito. Já a Irmandade Muçulmana, embora ilegal e com menos importância do que no passado, tem grande apoio entre as massas. Segundo Carrie Rosefsky Wickham, professora do departamento de Ciências Políticas da Universidade de Emory, em Atlanta, a aprovação popular do grupo estaria entre 20 e 40% - embora não existam dados oficiais que comprovem os números.
Em entrevista ao site de VEJA, o neto do fundador do movimento, Tariq Ramadan, afirma que a Irmandade não é um todo coeso. Ela abriga tradicionalistas da primeira geração, reformistas seduzidos pelo exemplo da revolução turca e radicais que desejam a imposição do islã pela violência. “Por trás da fachada de uma organização unificada e hierarquizada, existem linhas contraditórias, e não há um prognóstico fechado para o futuro do movimento”, diz ele.
Carrie e Ramadan concordam na avaliação de que a Irmandade não espera assumir o poder no curto prazo. "O repúdio à corrupção do regime de Mubarak era de fato um dos motores do movimento e, para se ver livre desse regime, a Irmandade buscará, ao menos num primeiro momento, partilhar o poder com outros grupos representativos da sociedade egípcia", diz Carrie. De acordo com Ramadan, as alas moderadas do movimento querem participar processo político e ter um papel no período de transição, mas sabem que não possuem representatividade suficiente para assumir o poder no momento
Confira a linha do tempo da Irmandade Muçulmana em http://veja.abril.com.br/noticia/internacional/a-irmandade-muculmana

Texto II

‘É a vez do movimento liberal no Egito’, aposta escritor

Em livro publicado meses antes da queda de Mubarak, o egípcio Tarek Osman previu uma revolução com origem na classe média e liderada pelos jovens

Ao lançar o livro Egypt on the Brink: From Nasser to Mubarak (O Egito por um triz: De Nasser a Mubarak - tradução livre -, da editora da Univerdade de Yale, dos Estados Unidos), em novembro de 2010, o escritor egípcio Tarek Osman não imaginava que uma revolução forte o suficiente para derrubar o presidente Hosni Mubarak aconteceria tão rapidamente. Mas em suas pesquisas históricas encontrou pistas que previam que uma erupção popular estava prestes a ocorrer.

Evitando uma cronologia linear, Osman explora as principais transformações pelas quais o Egito passou desde a queda do rei Farouk, em 1952, passando pelos regimes de Gamal Abdel Nasser (novembro de 1954 - setembro de 1970), Anuar Sadat (outubro de 1970 - outubro de 1981) e Hosni Mubarak (outubro de 1981 - fevereiro de 2011). Dedicada a leigos, esta é uma das poucas obras que abrangem a história atual do Egito, depois que o glamour do país deu lugar à superpopulação e à pobreza.
O Egito tem atualmente mais de 80 milhões de habitantes, sendo que 30 milhões deles estão abaixo da linha de pobreza. O rápido crescimento populacional também explica o rejuvenescimento da população: o país conta com cerca de 45 milhões de jovens de menos de 30 anos. “Se não fossem os jovens, as demonstrações provavelmente não teriam acontecido nessa intensidade”, pontua o escritor, que estudou em universidades americana e italiana. Para ele, “o momento agora não é dos fundamentalistas, mas do movimento liberal no Egito".

Leia a seguir a entrevista com Tarek Osman na íntegra:

Há pistas na história do Egito que explicam os recentes protestos que derrubaram Mubarak?
Houve uma série de fatores que resultou nessa revolta, muitos deles são ligados a uma transformação na classe média. Na era Nasser, esse grupo contava, acomodado, com o apoio econômico de um governo assistencialista. Depois disso, com Sadat e Mubarak, o governo gradualmente começou a mudar sua estratégia econômica, abrindo espaço para a iniciativa privada. Isso levou naturalmente a uma grande transformação na qualidade de vida dos trabalhadores. Sem as garantias empregatícias do governo, setores tradicionais do grupo, como professores, médicos e engenheiros, começaram a sofrer problemas financeiros. Consequentemente, a legitimidade do regime também ficou abalada, reduzindo a tolerância das pessoas em relação àquela aparente democracia em que eles não tinham qualquer participação real.

No seu livro, o senhor dedica um capítulo inteiro aos jovens egípcios, que representam uma grande porcentagem da população do país e foram os protagonistas dos distúrbios. De que forma esse fator demográfico também colaborou para a queda do presidente? 
Eu diria que esse é o ponto mais importante. A população do país praticamente duplicou nos últimos 30 anos. Quando Mubarak chegou ao poder, em 1981, esse número não passava de 45 milhões de pessoas. Hoje, os egípcios já somam mais de 82 milhões, sendo que mais de 45 milhões deles são jovens - todos em busca de se beneficiar nessa transição socio-econômica. O ímpeto de mudanças de uma população tão jovem assim, somado à crescente pressão sobre a classe média e ao questionamento geral sobre a legitimidade do governo, resultou nas recentes revoltas, organizadas pelas redes sociais. Na minha opinião, se não fossem os jovens, as demonstrações provavelmente não teriam acontecido nessa intensidade.

Os opositores ao governo Mubarak sempre foram duramente reprimidos. Por que a população se sentiu forte o suficiente para manifestar com tanta força desta vez?
É importante destacar que não foi a oposição política do Egito, reprimida há décadas, que se movimentou para as manifestações. Quem iniciou a revolução foram cidadãos comuns, especialmente de setores da classe média, representados pelos jovens egípcios, e não por qualquer partido político. Há quem diga que o que impulsionou a revolta foram as eleições parlamentares de novembro de 2010, acusadas de terem sido fraudadas por Mubarak, mas eu acredito que o principal catalisador foi a pressão socio-econômica em cima da classe média, que precisava ser aliviada. 

Como foi a experiência de estar entre os egípcios no dia em que Mubarak renunciou?
Tive muita sorte de não precisar sair do país nas últimas cinco semanas. Foi um momento histórico, além de ter sido bastante inspirador. Principalmente pelo fato de aquelas milhares de pessoas representarem um número enorme de segmentos da sociedade - os manifestantes não estavam à frente de um único grupo ideológico. Acho que por isso a revolta foi tão poderosa a ponto de derrubar um regime.

Seu livro foi lançado em novembro de 2010. O senhor imaginou que uma revolta de tais proporções fosse estourar poucos meses depois?
Se eu dissesse que imaginava, estaria mentindo. Acho que muitas pessoas, inclusive eu, previram uma erupção no Egito, com origem na classe média e liderada pelos jovens. Para mim, isso certamente estava prestes a acontecer, mas quando, exatamente, era difícil de se prever. É certo que a idade de Mubarak estava em nossos pensamentos - ele fará 84 anos -, além dos fatores que já mencionei. Diante de qualquer fraqueza no sistema, certamente se iniciaria uma revolta. O que podemos dizer é que a Tunísia e as últimas eleições parlamentares abriram as portas para essa erupção acontecer.

De que forma a era Mubarak se diferencia das outras passadas, de Nasser e Sadat, em termos democráticos e de participação da oposição? 
O regime foi muito mais aberto economicamente do que o de Nasser, o que foi necessário com o rápido crescimento da população. Pela primeira vez em toda a história, o setor privado no Egito se tornou o maior empregador dos egípcios. Até então, era somente o setor público que empregava. Com isso, as pessoas se tornaram economicamente independentes do regime e, consequentemente, aptas a escutar suas próprias reclamações e a se opor ao governo. O estabilishment que sempre colocou os militares no topo, embora ainda exista, cedeu espaço nos últimos 10 anos também para grandes financiadores, numa sociedade cada vez mais capitalista, o que colaborou para o enfraquecimento do regime. 

O senhor acredita que o Exército cumprirá com suas promessas na transição para a democracia? 
O Conselho Superior das Forças Armadas repetiu três vezes publicamente que vai garantir eleições livres e democráticas. Além disso, os militares têm um enorme respeito em relação aos egípcios. Eles ganharam até mais respeito nas últimas três semanas, pois quase não intervieram nas manifestações e não se opuseram à população. Acho improvável que eles façam algo que abale esse respeito que conquistaram. Se a classe média, especialmente os jovens egípcios, tem um ímpeto para mudanças, com o apoio de outros muitos milhões de pessoas, não acredito que o Exército se oponha a essas aspirações.

No seu livro, o senhor escreve bastante sobre religião. O quão importante ela é para a política no Egito? 
É extremamente importante. Nas últimas décadas, uma série de sectarismos surgiu no Egito. Essas divisões se intensificaram nos últimos dez anos, resultando em violentos confrontos entre segmentos religiosos no país. No primeiro dia de 2011, por exemplo, dezenas de cristãos morreram em Alexandria, em um atentado. Com isso, a sociedade egípcia ficou amedrontada, depois de muitos anos de paz entre cristãos e islâmicos. A classe média, especialmente, por causa das tensões, se tornou mais adepta da retórica nacionalista, deixando de lado a islâmica. Apesar de a Irmandade Muçulmana continuar sendo o maior movimento opositor no país, é importante ressaltar que a revolta que vimos nas últimas semanas foi impulsionada por um nacionalismo secular, e não pelo idealismo islâmico. 

A Irmandade Muçulmana, embora garanta que não apresentará um candidato à Presidência, já anunciou a criação de um partido político após as reformas na Constituição. Quais são as aspirações do movimento, em sua opinião?
O grupo foi por muitos anos o mais organizado e poderoso da oposição egípcia. O fato de que querer formar um partido político era previsível. Porém, a Irmandade Muçulmana não é um grupo coerente e homogêneo, há uma série de divisões dentro dele, e a atitude de cada um é diferente. Da mesma forma em que existem os conservadores, há também milhares de seguidores jovens. Nas eleições de novembro de 2010, essas tensões internas ficaram muito claras. O momento agora, como disse, não é dos fundamentalistas, mas do movimento liberal no Egito.

Existe a possibilidade de o Egito se tornar uma ditadura islâmica como o Irã?
No futuro, vamos ter um partido que represente a Irmandade Muçulmana e o Islã. Ele possivelmente terá uma forte representatividade no Parlamento, mas isso não significa que vai eleger um presidente ou ter um de seus membros como uma poderosa autoridade do país. Atualmente, já se vê muitos outros partidos políticos emergindo, especialmente do movimento liberal. Como o panorama político agora é muito mais aberto e livre, eles poderão se organizar e criar uma concorrência que a Irmandade nunca teve.

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