Pessoal, mais uma dica de livro: O Que Deu Errado no Oriente Médio? de Bernard Lewis. O comentário abaixo é de Marcelo Musa Cavallari e saiu na revista Época (27 de julho de 2002):
As raízes de um fracasso
O mundo árabe, vanguarda da cultura no passado, entra no século XXI como a região menos desenvolvida do planeta
Até o fim da Idade Média, a civilização islâmica esteve na vanguarda do progresso humano. Os maiores filósofos, matemáticos, médicos e astrônomos falavam árabe ou persa. O mundo muçulmano era mais rico e mais poderoso que o Ocidente, visto no Oriente Médio como uma região sombria, habitada por bárbaros ignorantes. Hoje os países árabes, com poucas exceções, estão entre os mais pobres e atrasados do planeta. No resto do mundo, sua imagem está associada à opressão das mulheres, ao marasmo econômico, à distribuição iníqua dos lucros do petróleo, a ditaduras sangrentas, à revolta impotente dos palestinos sob a ocupação israelense e, sobretudo a partir dos atentados de 11 de setembro, ao terrorismo ensandecido.
O que deu errado no Oriente Médio? Essa pergunta é, simultaneamente, o título de um livro de Bernard Lewis, um dos mais respeitados historiadores dos povos muçulmanos, recém-lançado no Brasil (Jorge Zahar Editor, 204 páginas, R$ 24), e o tema de uma pesquisa das Nações Unidas divulgada no início do mês. Numa iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), um grupo de estudiosos debruçou-se sobre o estado atual do mundo árabe em busca de um diagnóstico de seus problemas. As conclusões são desalentadoras. O estudo abarca as 22 nações que integram a Liga Árabe – exclui, portanto, os Estados muçulmanos não-árabes, como o Irã, a Turquia, o Paquistão e a Indonésia. Os países árabes, unidos pelo mesmo idioma, somam 280 milhões de habitantes, um pouco mais que os Estados Unidos. O PIB de todos eles juntos é de US$ 531 bilhões, menor que o da Espanha, com uma população de 40 milhões. A estagnação econômica árabe só perde para a da África Subsaariana, a região mais pobre do mundo. Nos últimos 20 anos os países árabes cresceram a uma média anual de 0,5%. A riqueza gerada pelo petróleo trouxe poucos benefícios, pois é aplicada nos mercados da Europa, dos Estados Unidos e do Japão. Para os países árabes, com a população mais jovem do mundo – um efeito dos altíssimos índices de natalidade –, esse atraso é sinônimo de desemprego, cerca de 15% na média da região. O descontentamento dessa juventude sem perspectiva fica evidente na pesquisa. Entre os entrevistados, metade dos adultos com menos de 25 anos disse que seu maior desejo é emigrar.
Os países árabes são um caso exemplar da insuficiência dos indicadores puramente econômicos para retratar a situação de uma população. Desde a década de 90 o Pnud trabalha com o Índice de Desenvolvimento Humano. Combinando expectativa de vida, taxa de analfabetismo, matrículas nas escolas de primeiro, segundo e terceiro grau e PIB per capita, chega-se a uma nota de IDH. Por esse critério, os países árabes têm o pior desempenho do mundo todo, atrás de lugares mais pobres, como o sul da Ásia e a África Subsaariana. 'A região é mais rica que desenvolvida', conclui o estudo. Para os pesquisadores da ONU, há três grandes déficits que mantêm o mundo árabe aquém de seu potencial econômico e humano: liberdade, igualdade para as mulheres e conhecimento. Nenhum país árabe é uma verdadeira democracia. As variações vão da tirania em seu estado mais bruto, como a de Saddam Hussein, no Iraque, a monarquias absolutas, como a da Arábia Saudita, passando por democracias de fachada, como no Egito. A imprensa é, no melhor dos casos, parcialmente livre. Também a utilização das capacidades da mulher no mundo árabe é a menor do mundo, segundo o Pnud. 'Toda a sociedade sofre quando metade de seu potencial produtivo é asfixiada', afirma o estudo. As mulheres, mantidas a distância da participação política e com menor acesso à educação, têm pouca chance de mudar o quadro. Cerca de 50% da população feminina árabe é analfabeta, índice duas vezes maior que entre os homens. Outro grave empecilho ao desenvolvimento é a falta de investimento em pesquisa e o acesso restrito à tecnologia de informação. O mundo árabe aplica em pesquisa sete vezes menos que a média internacional. Quando se olha para a cultura em seu conjunto, a situação não é melhor. O mundo árabe se mantém fechado ao conhecimento que se produz no resto do mundo. Os autores do estudo do Pnud calculam que, nos últimos 1.000 anos, a quantidade de traduções feitas na região equivale à de publicadas na Espanha em apenas um ano.
Ao indagar sobre os motivos do atraso, Bernard Lewis procura a resposta na própria cultura islâmica. Para esse historiador de 85 anos, inglês radicado nos EUA, professor emérito de estudos orientais na Universidade Princeton, os grandes culpados são os próprios árabes – presos ao passado, refratários aos valores da liberdade individual e terrivelmente machistas. Lewis detecta entre os muçulmanos de hoje duas reações possíveis diante do óbvio fracasso de uma civilização outrora esplendorosa. Uma é perguntar: o que fizemos de errado e como podemos consertar? A outra é indagar: quem fez isso conosco? Para Lewis, o mundo árabe, se quiser sair do atoleiro, só tem um caminho: seguir o exemplo da Turquia e adotar os padrões e valores ocidentais da democracia e do mercado o mais rapidamente possível. 'Perguntar quem nos causou esse atraso leva ao jogo de apontar culpados e a teorias conspiratórias e fantasias neuróticas de todo tipo', argumenta. Ditadores como Saddam Hussein acusam o Ocidente por todos os males do mundo árabe e líderes religiosos fundamentalistas apontam o abandono de um suposto verdadeiro Islã como a causa do atraso. 'Se os povos do Oriente Médio continuarem em seu presente caminho, os terroristas suicidas podem tornar-se uma metáfora para toda a região e não haverá saída para uma espiral descendente de ódio, rancor, fúria e autocomiseração', conclui Lewis.
Não é tão simples, rebate Edward Said, um intelectual palestino exilado em Nova York que se tornou uma das vozes mais respeitadas do mundo árabe no Ocidente. Para Said, de 66 anos, professor na Universidade Columbia, Lewis escreve como se entidades como o Ocidente e o Islã 'existissem num mundo de desenho animado, em que Popeye e Brutus surram impiedosamente um ao outro e o boxeador mais hábil leva a melhor'. A colonização, argumenta, criou o mito de uma mentalidade oriental árabe irreconciliável e, no fim das contas, inferior à do Ocidente. O complexo relacionamento entre história, cultura e religião, que gerou enormes diferenças entre as várias regiões árabes assim como fecundos contatos entre estas e os povos cristãos do Ocidente, foi substituído por uma ideologia de confronto. Esmagados por séculos de uma dominação que impôs cruelmente os próprios valores, os árabes procuram, aos poucos, restabelecer suas identidades através do retorno a sua cultura. 'No mundo das ex-colônias, esses retornos produziram variedades de fundamentalismo nacionalista e religioso', constata Said. Em sua visão, não há nada de errado com a cultura árabe ou o Islã em si mesmos. Curiosamente, tanto Lewis quanto Said assinalam o mesmo episódio – a invasão do Egito pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte, em 1798 – como o último suspiro da civilização árabe. Quem expulsou os invasores, anos depois, foi outra potência colonial, a Inglaterra, com uma expedição liderada pelo almirante Horatio Nelson. Foi o início de um longo período de dominação britânica, que só terminaria depois da Segunda Guerra Mundial. Para Lewis, Napoleão e Nelson foram portadores da esperança. Para Said, os pioneiros da desgraça.
segunda-feira, 8 de março de 2010
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