Pessoal, mais uma dica de leitura: o livro Sobre o Islã – A Afinidade entre Muçulmanos, Judeus e Cristãos e as Origens do Terrorismo, de Ali Kamel. O comentário abaixo é de Mario Sabino e saiu na revista Veja (22 agosto 2007):
O Islã próximo
Ali Kamel desnuda a religião muçulmana das vestesdo exotismo e faz a defesa da guerra no Iraque
Ali Kamel, diretor executivo de jornalismo da Rede Globo, tornou-se um especialista em dinamitação de lugares-comuns e idéias fora do lugar. Para tanto, conta com rigor e aplicação vários metros acima dos níveis habituais dos ensaístas destas plagas. Ele também exibe bastante destemor em seus bons combates. No asilo de conceitos que é o Brasil, há que ter couraça das mais duras (e estômago dos mais fortes), para agüentar os golpes desferidos pelos velhos patrulheiros da imprensa e da universidade – golpes sempre vindos da esquerda e, portanto, abaixo da linha da cintura. Há um ano, Kamel lançou o livro Não Somos Racistas, no qual demonstra que as "ações afirmativas" para favorecer os negros, como o regime de cotas nas faculdades, são de uma irracionalidade tonitruante para uma questão não existente no país – o racismo de matiz americano. O problema nacional, enfatiza Kamel, não é racismo, mas pobreza – que não diferencia milhões de negros de milhões de brancos e de milhões de pardos. Apesar da patrulha, Não Somos Racistas entrou na lista de mais vendidos de VEJA e conseguiu abrir um enorme buraco no monólito conceitual que domina a discussão sobre o assunto no Brasil. Agora, seu autor lança-se a um outro desafio, com o perdão da palavra batida: provar que o islamismo não é uma religião violenta em sua essência (não mais do que o judaísmo e o cristianismo, pelo menos). E que – quanta intrepidez – a guerra travada no Iraque não é tão absurda como faz crer a maioria dos comentaristas. Tais são os temas de Sobre o Islã – A Afinidade entre Muçulmanos, Judeus e Cristãos e as Origens do Terrorismo (Nova Fronteira; 320 páginas; 34,90 reais).
Como revela em parte seu próprio nome, Kamel tem um pé no enredo religioso que aborda não só com desassombro, mas também com didatismo. Seu pai é sírio e muçulmano. Pelo lado materno, as raízes são brasileiras – e católicas. Sua mulher é de origem judaica. "Eu acredito que minha história familiar me possibilita um olhar especial sobre as três religiões monoteístas", escreve ele. O livro começa com o relato pormenorizado de um encontro, registrado em vídeo, de Osama bin Laden e asseclas com um chefe muçulmano que havia chegado ao Afeganistão em novembro de 2001. Na conversa, eles comemoram os atentados nos Estados Unidos e tecem loas a Deus por ter propiciado a carnificina. Alguns dos terroristas falam das supostas visões antecipatórias que tiveram sobre o que consideram ser uma bênção divina. "Como podem envolver Deus nisso? Que processo leva essas pessoas a criar, a partir de uma religião que se quer pacífica, um dos movimentos políticos mais violentos que o mundo já viu, uma das maiores ameaças ao nosso estilo de vida, às liberdades essenciais do ser humano?", pergunta-se o autor, extravasando uma perplexidade que está longe de ser geral, visto que se disseminou no Ocidente um juízo negativo a respeito do Islã.
Para separar o que é dado religioso daquilo que não passa de interpretação indevida ou apropriação indébita, Kamel empreende uma tarefa hercúlea. Seu objetivo expresso – e plenamente alcançado – é o de demonstrar como o islamismo, em que pesem suas vestes exóticas aos olhos ocidentais, baseia-se nos mesmos pilares do judaísmo e do cristianismo. Nessa direção, ele se aprofunda na gênese comum das três religiões, por meio da comparação entre passagens da Bíblia e do Corão que narram a vida de personagens fundadores, como Noé, Abraão, Isaac, Ismael e José, até chegar a Jesus. No que se refere a este último, uma curiosidade – na visão dos muçulmanos, ele não é filho de Deus, e sim um profeta maior do que todos os outros. Tanto que, como relata Kamel, "o Islã não aceita a sua crucificação: tudo não teria passado de uma ilusão, já que Jesus teria subido aos céus em seu corpo físico. Seus algozes teriam sido iludidos, viram uma crucificação que nunca houve. Jesus, portanto, não morreu, mais um milagre que Deus concedeu a ele". No final dos tempos, porém, acreditam os islamitas, Jesus voltará à Terra, para derrotar o Anticristo e governar o mundo por 45 anos. Em sua segunda vinda, ele se casará, gerará filhos e morrerá normalmente.
Para os leigos, é surpreendente a figura de Maomé que emerge da síntese do Corão feita por Kamel. Do profeta iniciador do islamismo pode-se dizer que foi humano, demasiado humano. Teve uma infância cheia de dificuldades, permaneceu analfabeto até cerca de 40 anos, quando foi visitado pelo arcanjo Gabriel, e suas primeiras visões causaram-lhe angústia. Uma vez imbuído da missão de levar adiante a palavra do Deus único (ou Revelação), experimentou grande resistência para convencer seu povo a abandonar o politeísmo. Em visita ao Paraíso – sim, de acordo com a tradição, ele esteve lá quando vivo –, chegou a negociar com Deus o número de orações diárias a ser feitas pelos muçulmanos, por orientação de um judeu: ninguém menos do que Moisés (veja trecho). Maomé também jamais teve controle algum sobre os versículos que lhe eram soprados por Gabriel e viriam a compor o Corão, cuja forma escrita só seria consolidada depois da morte do profeta. Não há registro de que tenha operado milagres. Afirma Kamel: "O certo é que Maomé, ao longo de sua vida, nunca escondeu que era um homem como outro qualquer e, dizem as tradições, gostava de lembrar aos fiéis o que dele dizia o Corão: Maomé não é mais do que um Mensageiro a quem outros precederam".
Esse simples mensageiro deixou uma família dividida, que se digladiaria em torno da sucessão de Maomé e da qual o islamismo, por seu turno, herdaria as vertentes sunita e xiita. A diferença entre ambas, explicada em detalhes por Kamel, é basicamente a seguinte: para os sunitas, o profeta não indicou sucessor, a Revelação encontrou o seu termo com a morte de Maomé e só o que há a fazer é seguir a Suna, os mandamentos legados pelo profeta. Para os xiitas, Maomé foi sucedido por um primo, Ali, o primeiro imã (ou guia espiritual), e a Revelação ainda guarda aspectos ocultos, a ser desvendados por outros imãs. A palavra xiita vem do árabe shi' at'Ali, cujo significado é "partidários de Ali". Da dissensão entre sunitas e xiitas nasceria grande parte das animosidades que explodem no interior do Islã e também de dentro dele em relação ao exterior – cujo lado mais apavorante é o terrorismo.
Apesar da divisão interna do Islã, Kamel explica que a concepção de que se trata de uma religião movida pelo ódio é fruto da ignorância ocidental e do despotismo de seguidores seus que compõem uma minoria. Há mensagens de violência no Corão? Sim, mas também há na Bíblia judaico-cristã. Boa parte da expansão muçulmana foi realizada pela força da espada? Sim, mas tanto quanto a cristã. Seus mandamentos e prescrições são por vezes contraditórios? Sim, mas qual religião não embute contradições? Para o autor, o que importa é que, deixando de lado certas vicissitudes, o Islã no mais das vezes teve – e tem – como regra a boa convivência com as outras religiões. Diz Kamel, depois de citar versículos do Corão simpáticos ao judaísmo e ao cristianismo: "Não tenho muitas dúvidas de que, ao longo da maior parte de sua história, a ênfase na repulsa a judeus e cristãos sempre foi bem menos intensa do que a ênfase no acolhimento".
Nos capítulos derradeiros do livro, Kamel defende a tese segundo a qual chamar os radicais islâmicos de fundamentalistas é um equívoco que os "enobrece" do ponto de vista religioso. Na realidade, eles seriam apenas totalitários políticos – mais próximos, assim, de um Hitler do que de um Jim Jones, na comparação do autor. É por combater esse totalitarismo que a guerra no Iraque seria, mais do que circunstancialmente necessária, moralmente justa. Inclusive para a sobrevivência do próprio Islã. Maomé e Bush do mesmo lado, quem diria. A lógica da máquina do mundo pode ser infernal. E a coragem de Kamel, assim como Alá, é grande.
sexta-feira, 5 de março de 2010
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