domingo, 20 de julho de 2014

64 - Livros sobre a primeira Guerra Mundial (outras análises)

Mais comentários de livros sobre a Primeira Guerra Mundial. Saiu na Folha de São Paulo de hoje (20 de julho):

A primeira guerra total

Há cem anos começava o conflito até hoje nebuloso
 
MARCELO COELHO

RESUMO A responsabilidade russa, as atrocidades do exército prussiano sobre os belgas, o assassinato do arquiduque e o jogo político na Europa são alguns dos temas explorados em diversos livros recentes que investigam a Primeira Guerra, conflito que, cem anos depois de seu início, permanece ainda pouco investigado.
-
Ao contrário da Segunda Guerra Mundial --que se explica pelo nazismo--, tudo é obscuro e controverso no conflito que foi de 1914 a 1918. A morte de ao menos 10 milhões de pessoas naqueles quatro anos parece ter sido um sacrifício inútil, causado não se sabe exatamente por que razão.
Os resumos de escola se contentam em mencionar o assassinato de Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austro-húngaro, como o "estopim" da Primeira Guerra --que, em seguida, é desqualificada como um confronto entre potências imperialistas (França, Inglaterra, Rússia e, posteriormente, Itália e Estados Unidos de um lado; Alemanha, Império Austro-Húngaro e Império Otomano de outro).
Sem despertar maiores torcidas no plano moral, o interesse pela Primeira Guerra termina diminuído na comparação com a luta dos Aliados contra Hitler e Mussolini; a complicadíssima crise de 1914 pode ser fascinante, mas tende a atrair sobretudo os fanáticos pelos jogos de geopolítica e pelas teorias das relações internacionais.
Vários livros vão sendo editados no Brasil por ocasião do centenário da Primeira Guerra, e podem mudar bastante essa percepção.
Nenhum dos que serão comentados neste texto consegue superar "Os Canhões de Agosto", clássico de Barbara Tuchman publicado nos Estados Unidos em 1962 e com tradução brasileira esgotada há bastante tempo. É que, ao contrário das interpretações correntes, a historiadora americana (1912-1989) não temeu os julgamentos morais --em seu livro, condena claramente a Alemanha--, sem sacrificar por isso a precisão e o ritmo fulgurantes da narrativa.
Mesmo que seu ponto de vista se revele contestável à luz de pesquisas mais recentes --como a de Sean McMeekin, no ainda não traduzido "July 1914" [Perseus, R$ 72,30, 464 págs.; disponível também em e-books], que aponta para a responsabilidade russa na crise--, o livro de Barbara Tuchman é o melhor "estopim" emocional para quem quiser se envolver nas discussões sobre o conflito.
MILITARISMO Ainda que todos os participantes da Primeira Guerra tenham promovido atos hediondos --com monumental destaque para o genocídio armênio, que deixou pelo menos 1 milhão de mortos, empreendido pelos turcos a partir de 1915--, mesmo antes de Hitler o militarismo prussiano acumula um currículo com o qual é difícil rivalizar.
Os alemães foram os primeiros a utilizar gás venenoso na guerra, na segunda batalha de Ypres, em 1915. Antes disso, os franceses se limitaram ao gás lacrimogêneo. Logo os combatentes trataram de se proteger com máscaras de diversos tipos. Ao cloro letal, capaz de corroer o tecido dos pulmões, a tecnologia alemã acrescentou então o gás mostarda, que atua diretamente sobre a pele.
Veio dos alemães a decisão de usar submarinos (indetectáveis à época) para atacar não só navios militares como também navios mercantes, a partir de outubro de 1914, e também transatlânticos de passageiros, como o britânico Lusitania, em maio de 1915. O navio afundou em menos de 20 minutos, matando perto de 1.200 civis.
Foram também os primeiros, na Grande Guerra, a lançar ataques aéreos contra a população urbana. Em agosto de 1914, nove habitantes da cidade belga de Liège foram mortos por bombas jogadas de um zepelim. Inicialmente vetados pelo kaiser, os bombardeios contra Londres viriam no começo de 1915.
Numa incursão inútil ao litoral britânico, o almirante Von Hipper explodiu casas de veraneio e edifícios públicos em dezembro de 1914. Era o conceito de "guerra total", ou "absoluta", que se impunha sobre as populações europeias (embora tivesse precedentes mais antigos). Não mais se acreditava que um conflito entre países dependesse só de batalhas entre soldados; tratava-se de destruir todos os recursos econômicos, humanos e morais do adversário.
ATROCIDADES Nenhuma dessas iniciativas alemãs teve efeito comparável, na opinião pública mundial, ao das famosas "atrocidades" (o termo virou um lugar-comum) cometidas na Bélgica logo nos primeiros dias da guerra.
Era tão grande a autoconfiança da máquina militar prussiana que os invasores nem sequer cogitavam uma possível resistência do pequeno país neutro. Os planos alemães previam passar pela Bélgica rapidamente, de modo a atacar a França pelo norte, evitando a linha de fortificações que protegia a fronteira leste francesa.
Não se teve ideia melhor do que redigir um ultimato à Bélgica --que não tinha nada a ver com o que acontecia do outro lado da Europa, entre russos, sérvios, austríacos e alemães. O pequeno país do rei Alberto 1º tinha sua neutralidade garantida por um tratado internacional assinado em 1839, pela Prússia inclusive.
O tratado? "Só um pedaço de papel", na frase famosa do ministro alemão das Relações Exteriores, Theobald von Bethmann-Hollweg. Para assegurar a marcha até Paris, ele expediu uma carta aos belgas, prometendo não atacá-los e pagar por eventuais prejuízos, caso franqueassem suas fronteiras às tropas alemãs.
Já em 1904, o kaiser Guilherme 2º acenara com ganhos territoriais para a Bélgica, em caso de derrota dos franceses. De modo tipicamente descalibrado --para dizer o menos--, prometera também a "coroa da Borgonha" ao soberano belga.
Preferindo resistir a anular-se como país independente, a Bélgica logo enfrentaria uma impiedosa devastação. Os alemães não duvidavam da própria superioridade militar, mas temiam a reação de franco-atiradores.
Em "Catástrofe - 1914: A Europa vai à Guerra" [trad. Berilo Vargas, Intrínseca, R$ 49,90, 704 págs.; R$ 29,90, e-book], do jornalista e historiador britânico Max Hastings, 68, alinham-se exemplos chocantes das retaliações do exército do "kaiser" sobre a população belga.
Trata-se de um dos raros livros recentes a insistir na tese da culpa alemã, tese essa que teve seu auge na década de 1960 com as pesquisas do germaníssimo (e ex-nazista) Fritz Fischer (1908-1999), da Universidade de Hamburgo.
Hastings conta que, em 5 de agosto de 1914 (dois dias depois de a Alemanha declarar guerra à França), dez moradores de uma aldeia belga, incluindo uma família de cinco pessoas, foram assassinados em resposta à morte de soldados alemães. Os 118 habitantes da vila de Soumagne foram mortos com tiros ou golpes de baioneta no dia seguinte.
Os alemães avançaram até Liège: em 8 de agosto, como punição por atos de resistência, 850 civis foram executados, e 1.300 casas, destruídas pelo fogo.
O pior aconteceria em Louvain, também na Bélgica, em 25 de agosto. Um incêndio acidental colocou os alemães em polvorosa. Invadiram casas, arrastaram moradores para a rua, espancaram-nos, fuzilaram-nos, e tiveram a ideia de incendiar uma das mais valiosas bibliotecas da Europa, com 300 mil volumes. Em seguida, impediram os bombeiros de agir, destruíram 2.000 edifícios e expulsaram 10 mil habitantes de suas casas, deportando 1.500 para a Alemanha.
Casos semelhantes fazem parte, hoje em dia, da rotina de qualquer guerra; na época, justificaram plenamente a imagem dos alemães como "bárbaros", ou "hunos", no vocabulário da propaganda britânica. Contra os 6.427 civis mortos pelos alemães em 1914, segundo Hastings, contam-se apenas 101 vítimas da população alemã na invasão russa da Prússia Oriental, no mesmo ano.
O que explica tanto furor guerreiro? Hastings cita o texto de um polemista alemão em 1913, segundo o qual "a destruição impiedosa das forças inimigas é o objetivo mais humano que se possa ter, por estranho que pareça". Havendo muita consideração pelo adversário, a guerra se prolongaria demais, com prejuízo para todos.
PERSPECTIVAS Para encontrar perspectivas menos desfavoráveis aos alemães, é preciso fechar os livros de Barbara Tuchman e Max Hastings, cuja argumentação viemos seguindo até agora.
"Os Sonâmbulos" [trad. Laura Teixeira Motta e Berilo Vargas, Companhia das Letras, R$ 69,50, 704 págs.; R$ 39,50, e-book], do britânico Christopher Clark, tem vários pontos de superioridade sobre "Catástrofe". Concentra-se sobre os antecedentes históricos da Primeira Guerra, traçando com nitidez e verve a situação política, para lá de confusa, dos países envolvidos no conflito.
Enquanto Hastings é sobretudo um historiador militar da velha guarda, apressando a narrativa da crise diplomática de julho de 1914 para contar em pormenor as batalhas travadas ao longo daquele ano, Clark ilumina a sequência de improbabilidades, cálculos errados e tensões involuntárias que iria desencadear o conflito.
Evita o "jogo da culpabilização", ou "blame game", sempre tentador num desastre de tais dimensões. "A Grande Guerra foi uma tragédia, não um crime", afirma na conclusão.
CRIME BÁRBARO Seja como for, o livro de Clark começa com um crime bárbaro e repugnante. Não se trata, ainda, do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando e de sua mulher. Para uma descrição sensacional do atentado, a melhor leitura em português está em "O Assassinato do Arquiduque: Sarajevo, 1914, e o Romance que Mudou o Mundo" [trad. Gilson César Cardoso de Souza, Cultrix, R$ 52, 400 págs.], de Greg King e Sue Woolmans.
Mas o crime a que Clark se refere ocorreu em Belgrado, 11 anos antes. O rei Alexandre e a rainha Draga são acordados no meio da noite; é uma conspiração militar. Estão protegidos, nos aposentos reais, por uma pesada porta de carvalho --que uma carga de dinamite põe abaixo. O casal se esconde na rouparia.
Em outras partes de Belgrado, o massacre toma livre curso; dois irmãos da rainha são apunhalados, o primeiro-ministro e o ministro da Guerra são executados à queima-roupa. Por fim, o rei e a rainha serão encontrados, mortos e esquartejados. Era o fim da dinastia dos Obrenovic, notável pela brutalidade.
Toma conta do reino o representante da dinastia rival, de currículo não menos apavorante, mas seguindo um ideário supostamente liberalizante --e, principalmente, expansionista. Numa região pulverizada em pequenas nacionalidades, tentando emergir entre os destroços de dois impérios (o Otomano e o Austro-Húngaro), ganhava força o lema segundo o qual "onde há um sérvio, lá é a Sérvia".
O grupo que toma o poder após o assassinato de Alexandre e Draga tem apoio da Rússia, motivada não só por questões de identidade étnica --eram todos "eslavos"-- mas também pelo afã de garantir o enfraquecimento de turcos e austríacos numa área de importância geopolítica fundamental até hoje. A saber, o lado oriental do Mediterrâneo e sua ligação com o mar Negro, capaz de prover a Rússia de portos incomparavelmente mais convenientes do que as águas geladas do norte europeu.
Os assassinos de 1903, em especial o famigerado Dragutin Dimitrijevic, o Apis (chefe da organização secreta Mão Negra e também responsável pelo serviço de inteligência do Exército sérvio) dariam inspiração e recursos para que o jovem Gavrilo Princip, nascido na Bósnia, mas de origem sérvia, disparasse os tiros de Sarajevo.
Do ponto de vista de hoje, marcado pelos atentados do 11 de Setembro, não chega a ser surpreendente que os austríacos tenham desejado reagir militarmente contra a Sérvia, cuja organização governamental estava implicada claramente em atos terroristas.
Com notável isenção, Clark lembra que não deixavam de ser legítimos os interesses da Sérvia em aumentar seu raio de independência, em meio a minorias nacionais sob o jugo dos austríacos.
TORRE DE BABEL O regime do velhíssimo imperador Francisco José errou catastroficamente ao pretender punir a Sérvia. Seu Exército, uma torre de Babel de nacionalidades que mal e mal improvisaram um mínimo idioma alemão em comum, vinha acumulando derrotas durante todo o século anterior. Enquanto isso, a Rússia se armava e se modernizava, com entusiasmada assistência francesa.
Uma ação austro-húngara contra a Sérvia previsivelmente desencadearia uma represália russa. Sabendo disso, os austríacos enviaram à corte do kaiser, no começo de julho, uma missão encarregada de avaliar o apoio dos alemães à pretendida missão punitiva.
Obteve da Alemanha o famoso "cheque em branco", garantindo, nos termos da aliança entre os dois países, sustentação militar à invasão da Sérvia. Guilherme 2º esperava que os austríacos empreendessem uma "blitzkrieg" contra Belgrado, coisa que eles não estavam preparados para fazer. Grande parte do Exército, composto de camponeses, se preparava para a colheita do verão; quanto à metade húngara do sistema político dual do império, eram imensas as resistências a entrar em guerra.
Clark, assim como faz Sean McMeekin em sua reconstituição, dia por dia, dos mal-entendidos e hesitações da crise, é excelente ao demonstrar que, dentro de cada país e dentro do espírito de cada uma das principais lideranças políticas, nada existia de unívoco.
O kaiser tinha, com certeza, alguns parafusos a menos. Após um concerto, pegava o maestro pelo braço e lhe ministrava lições de música. Após receber um título puramente honorífico da Marinha britânica (era neto da rainha Vitória), começou a pedir informações e dar palpites sobre a organização do poderio naval alheio.
"Os Três Imperadores" [trad. Clóvis Marques, Objetiva, R$ 57,90, 600 págs.; R$ 29,90, e-book], da britânica Miranda Carter, faz a biografia conjunta, com algum excesso de fofocas familiares, dos primos George 5º (Inglaterra), Nicolau 2º (Rússia) e Guilherme 2º (Alemanha).
No plano puramente estratégico, o soberano alemão tinha sempre uma proposta absurda: numa crise entre EUA e Japão, por exemplo, ofereceu ao presidente americano um destacamento militar para guardar a costa californiana.
Enquanto os austríacos não invadiam a Sérvia, o medo passou a tomar conta de Guilherme 2º; cada dia de atraso tornava mais provável a mobilização russa em favor do pequeno país eslavo.
Por que não desistir, então?
Bem que o kaiser tentou, assim como Nicolau 2º do lado russo, mas a crise acabou chegando a um ponto em que a técnica (e os desejos) puramente militares tornavam difícil recuar.
A diplomacia significava cada vez menos. É difícil, apesar das argumentações de Clark e de McMeekin, crer na sinceridade dos esforços, ou na acidentalidade dos erros, de um personagem como Bethmann-Hollweg, ministro das Relações Exteriores alemão. Cada passo inexplicável da diplomacia alemã pode ser visto como falha profissional mas também como aposta no caminho de fazer a Rússia, e não a Alemanha, surgir como responsável pela beligerância.
"MYGOTOVY!" Sem dúvida, a violência com que a Alemanha desencadeou o ataque à Bélgica e à França só se justifica, do ponto de vista subjetivo, pelo fato de que se sentia efetivamente acuada por inimigos a ponto de querer destruí-los.
A teoria de que a Alemanha estava "cercada" e que só desejava "um lugar ao sol" ganha argumentos no livro de Clark e, mais ainda, em "O Horror da Guerra" [trad. Janaína Marcoantonio, Planeta, R$ 89,90, 768 págs.], do escocês Niall Ferguson, pelo fato de que repetidas vezes a Inglaterra vetou empreendimentos comerciais alemães no Oriente e na África.
É mais fácil ver, por outro lado, o que a França teria a ganhar na eventualidade de uma guerra (tratava-se de recuperar as regiões da Alsácia e da Lorena, perdidas para Bismarck em 1870), do que os benefícios à Alemanha. Se a Rússia quisesse entrar em guerra com Alemanha e Áustria em função de algum conflito balcânico, disse famosamente o francês Poincaré em 1912, "estamos prontos" a ajudar. Falou em russo: "Mygotovy!"
A certeza de que a Rússia, com ajuda francesa, militarizava-se cada vez mais foi um importante fator para o pensamento militar germânico. Melhor entrar em guerra agora do que mais tarde, raciocinava Moltke, o chefe do Estado-Maior alemão.
Ele sabia que a guerra europeia, nas condições modernas, seria prolongada e destrutiva (ao contrário, seu equivalente francês, Joffre, apostava em cargas de cavalaria e baionetas no estilo napoleônico). Mesmo representando o "fim da civilização", era uma realidade que teria de ser encarada.
Trata-se de um bom exemplo daquele "pensamento trágico" tão ao gosto dos conservadores --de qualquer país, aliás. O debate sobre as responsabilidades de cada um no morticínio é interminável. A bibliografia, mesmo em português, não cessa de aumentar.
"Os Sonâmbulos", de Clark, é o melhor da atual safra. "O Horror da Guerra", de Ferguson, formula as perguntas cruciais sobre a guerra em seu conjunto (por que as pessoas lutavam? Houve entusiasmo da população? Que país era o mais militarista?), mas peca por certa extravagância nas respostas, com marcada antipatia pela posição inglesa no conflito. O excesso de estatísticas e notas torna mais trabalhosa, ademais, sua leitura.
"Catástrofe", de Max Hastings, combina história diplomática, narrativa militar e depoimentos de soldados e civis para traçar um quadro do primeiro ano do conflito, atento à voga da "história do cotidiano", à técnica militar e à tendência recente de enfocar o desenvolvimento dos conflitos nas decisões individuais de seus protagonistas. O resultado é que o texto, apesar de muito claro, parece oscilar entre essas três perspectivas.
A vida nas trincheiras e nas regiões assoladas pelo conflito é tratada de forma engenhosa em outro livro, "A Beleza e a Dor" [trad. Fernanda Sarmatz Åkesson, Companhia das Letras, R$ 62, 520 págs.], do sueco Peter Englund, que entrelaça histórias reais de pessoas de várias nacionalidades durante aqueles anos.
Como texto de referência, algo como um verbete de enciclopédia bastante estendido, há ainda "A Primeira Guerra Mundial" [trad. Roberto Cataldo Costa, Contexto, R$ 69,90, 560 págs.], de Lawrence Sondhaus. Até o final deste ano do centenário da Grande Guerra, certamente mais coisa será lançada nesse horizonte, já tão cheio de clarões e de fumaça.

sábado, 21 de junho de 2014

63 - Livros sobre a Primeira Guerra Mundial


No The Wall Street Journal, o historiador Gary D. Sheffield analisa os seguintes livros sobre as origens da guerra de 1914:
The Month That Changed the World: July 1914, de Gordon Martel. Oxford University Press, 512 pages, $39.95
July Crisis: The World's Descent Into War, Summer 1914, de T.G. Otte. Cambridge University Press, 530 pages, $29.99
The Outbreak of the First World War: Structure, Politics, and Decision-Making, de Jack S. Levy and John A. Vasquez. Cambridge University Press, 305 pages, $34.99
 
A Mad Catastrophe: The Outbreak of World War I and the Collapse of the Habsburg Empire, de Geoffrey Wawro. Basic Books, 440 pages, $29.99
Dos quatro, só li o terceiro ("The Outbreak of the First World War"). Recomendo esse livro, que reúne ensaios de nove estudiosos, especialmente para os que, além de História, pretendem cursar, estão cursando e já cursaram Relações Internacionais. Gostei muito das análises sobre a guerra preventiva (quem é meu aluno do Terceiro Ano sabe do que estou falando).
Seguem as análises de Sheffield, em inglês. No final, ele sugere outros livros
BOOK REVIEW: THE WORLD WAR I BLAME GAME
A minor incident in the Balkans escalated into a global cataclysm—was it an accident or a crime?
By  Gary D. Sheffield
Was anyone responsible for the outbreak of World War I? The victorious powers of 1918 certainly thought so. The "war guilt clause" of the Treaty of Versailles blamed the conflict on "the aggression of Germany and her allies."
Yet within a few years, the allocation of guilt had gone out of fashion. In 1929, the American historian Sidney B. Fay, after an exhaustive study of the available documentation, stated: "No one country and no one man was solely, or probably even mainly, to blame." Fay's view was supported by the testimony of David Lloyd George, who had been intimately involved in the "July Crisis" and served as British prime minister in the second half of the war. In his memoirs, Lloyd George argued that the war had been a tragic accident. Following the assassination on June 28, 1914, in Sarajevo of Archduke Franz Ferdinand, heir to the Austro-Hungarian throne, "nobody wanted war," he wrote, but European governments had "slithered over the brink."
Such views capture the zeitgeist of the interwar years. Surveying the wreckage, it was all too easy to wonder if nearly 10 million men had died unnecessarily. As the world neared and then plunged into a second, even greater, conflict, the 1914-18 war appeared futile indeed. It was judged to have been allowed to escalate from a minor incident in the Balkans into a global cataclysm and blamed on international alliances, militarism, unscrupulous arms merchants, and blundering politicians and diplomats.
This consensus was broken in 1961 by the German historian Fritz Fischer. The uncompromising German title of his first book set out his stall; World War I was caused by "Germany's Grab for World Power" (Griff nach der Weltmacht, translated into milder English as "Germany's Aims in the First World War"). Fischer pointed to the "War Council" of Dec. 8, 1912, where Wilhelm II and his inner circle had decided to go to war 18 months later. The assassination in Sarajevo was just an opportunity to precipitate their plans. Fischer's most explosive discovery was the 1914 "September program" that set out extensive territorial annexations to cement Germany's domination of the continent. He highlighted clear continuities between the foreign policies of Kaiser Wilhelm and of Hitler. Many Germans struggling to come to terms with World War II had turned to the Kaiserreich as the true, decent Germany. For such people, Fischer's claims, as he admitted, were "nothing short of treason."
Fischer's thesis, though often modified, became the new orthodoxy, and only very recently has a serious challenge appeared. In 2012, the Cambridge-based historian Christopher Clark published "The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914." He argued strongly against the allocation of blame for the outbreak of the war. In his view, all the major actors played a role: "Viewed in this light, the outbreak of war was a tragedy, not a crime." In Germany, the book became a best seller. Germans, it seems, appreciate a foreigner—Mr. Clark is Australian—telling them that their country cannot be blamed for launching the first of the world wars. Margaret MacMillan, an Oxford-based historian, was also equivocal about apportioning the "blame" for the war in her 600-page "The War That Ended Peace" (2013). This return to the "no one or everyone was to blame" stance of the 1920s and '30s easily leads to the view that the war was futile, a position adopted by numerous commentators as we mark the war's centennial this year.
Yet this school of thought has failed to convince the majority of historians. While recognizing the importance of Mr. Clark's meticulous study of the background to the war, critics have pointed to the fact that he rushes through the events of the last week in July 1914—surely the most significant period of the entire prewar period. Similarly, military planning and preparedness, seen by many as essential to understanding the outbreak of war, get little attention from Mr. Clark. The most controversial of his ideas, though, is that of the sovereigns, politicians and generals of Europe collectively "sleepwalking" into catastrophe. It makes responsibility between individuals and states relative. Far from somnambulating, the key players knew all too well the paths they were traveling.
Whatever reservations one might have about Mr. Clark's broader thesis, in "The Sleepwalkers" he did a very valuable service in putting Austria-Hungary, Serbia and the Balkans back at the center of the debate and in demonstrating the immense complexity of the issues at stake. The emergence of Austria-Hungary out of Germany's shadow is one of the most significant post-Fischer historiographical developments. Shut out of its traditional spheres of influence in Italy and Germany by the creation of those nations, Austria-Hungary increasingly looked to the Balkans in the early 20th century. There the decline of the Ottoman Empire (Turkey) appeared to offer rich territorial pickings. But the Austro-Hungarians faced a rival force in the form of Balkan nationalism, centered on the resurgent state of Serbia, which aspired to create "Yugoslavia," a nation encompassing all Serbs, including the large number living under Habsburg rule in provinces like Bosnia, Croatia and Vojvodina. In the background loomed Russia, which saw itself as the protector of the South Slavic people.
In "A Mad Catastrophe: The Outbreak of World War I and the Collapse of the Habsburg Empire" (Basic, 440 pages, $29.99), Geoffrey Wawro accepts German "war guilt" but makes a powerful case for sharing it with Vienna. Mr. Wawro, an American military historian, offers a picture of an Austro-Hungarian leadership that was reckless in the extreme. A fatalistic sense of "now or never" gripped men such as Emperor Franz Josef —depicted here not as a charming anachronism but as "an altogether malevolent force"—the foreign minister, Count Berchtold, and the army chief of staff, Conrad von Hötzendorf. The outrage in Sarajevo offered an opportunity to settle accounts once and for all with Serbia, suspected of being behind the crime. The decision-makers were very aware that an attack on Serbia might bring in Russia, and Vienna did not want a general war. But wishful thinking prevailed. Serbia was presented with an ultimatum designed to be rejected. When, to general surprise, the Serbs accepted nearly all the demands, Austria attacked anyway.
Out-of-control elements of the Belgrade government had certainly encouraged the assassins, and Mr. Wawro makes clear that Vienna regarded Serbia as a rogue state deserving of dismemberment. The Habsburg leadership ignored the possibility of chastisement without war. British Foreign Secretary Sir Edward Grey offered mediation or an international conference on no fewer than six occasions that summer. If the crisis had been internationalized in this way, it is highly likely to have resulted in Serbia being punished but also with its sovereignty left intact—and with the threat of a European war averted.
Alongside those pointing the finger of blame at this or that politician or state, there have been no shortage of writers eager to assign responsibility to long-term structural forces like imperialism, economic rivalry, militarism or arms races. Such explanations have the whiff of inevitability about them. In 1981, the German historian Wolfgang Mommsen went so far as to write an essay about "The Topos of Inevitable War in Germany in the Decade Before 1914." Such deterministic interpretations are much less in favor these days, and both Gordon Martel, in "The Month That Changed the World: July 1914" (Oxford, 484 pages, $34.95), and T.G. Otte, in "July Crisis: The World's Descent Into War" (Cambridge, 534 pages, $29.99), argue persuasively and at length that what individuals did during the July Crisis really mattered. These books are minute dissections of the events and the decisions that were made between the Sarajevo assassination and the outbreak of a general war on Aug. 4. Mr. Martel, a Canadian professor of history, argues that too much investigation of the origins of the war has taken place under "a dark cloud of predetermination, of profound forces having produced a situation in which war was inevitable."
Germany looms large in these discussions. It is unthinkable that Austria would have taken the path of confrontation with Serbia without the active backing of the Continent's dominant military power. This support was the result of a conscious decision taken by a tiny group of the German imperial elite, and on July 5, 1914, Wilhelm II issued what has become known to history as the "blank check" of unconditional support to Austria-Hungary. Three days later, a senior Austrian official privately wrote that there was "complete agreement" with the Germans; Serbia must be attacked "even at the risk of a world war which is not ruled out [by Berlin]." This letter, printed in Annika Mombauer's invaluable "The Origins of the First World War: Diplomatic and Military Documents" (2013), is one of many pieces of evidence that Fritz Fischer's arguments remain fundamentally sound. The belligerence of German foreign policy, the readiness of the German leadership to court war in pursuit of diplomatic objectives (in this case breaking up the "Triple Entente" of Russia, France and Britain) and its willingness to initiate an aggressive war are all Fischerite themes. John Röhl, who studied under Fischer, makes a compelling case in the recent third volume of his hugely impressive biography of Wilhelm ("Into the Abyss of War and Exile") that "the military-political discussions" of the war council of Dec. 8, 1912, "finally led to Armageddon in the summer of 1914."
Messrs. Martel and Otte are covering well-trod ground, yet they have produced distinguished and readable books that offer much detail of the failings and miscalculations of politicians, soldiers and diplomats across Europe. Mr. Martel's "The Month That Changed the World" relies on published primary sources (which are exploited very thoroughly) and secondary works, and the author makes very effective use of a day-by-day narrative approach. He has some acute insights. He notes that in 1938, during the Sudetenland Crisis, British Prime Minister Neville Chamberlain was determined to learn from the failure in July 1914 and hold a great-power conference. This resulted in his meeting with Adolf Hitler at Munich. "Men do learn from their mistakes," Mr. Martel dryly observes; "they learn how to make new ones." The book is rich in the traditional resources of the diplomatic historian: letters, telegrams and memoranda. Mr. Martel's conclusions are reminiscent of those of Margaret MacMillan: "War was neither premeditated nor accidental," he writes. He quite specifically states, moreover, that the leaders of 1914 "did not walk in their sleep."
Mr. Otte is particularly strong on a forensic revisiting of the sources, which he notes have tended to be played down in "the focus on impersonal forces." A historian of international relations at the University of East Anglia, he is balanced in his criticism of the Germans. While he argues that "No-one at Berlin willed war," his picture of the behavior of the kaiser and his chancellor, Theobald von Bethmann Hollweg, is highly unfavorable—showing them concerned time and time again that Austria-Hungary not back down even as they struggled to localize the quarrel in the Balkans. Mr. Otte denies that the German leadership had "criminal intent" but in the same paragraph notes a "recklessness that borders on the criminal. Theirs comes very close to it." The evidence presented by these and many other scholars points to the conclusion that at the very least the Germans were prepared to run the risk of a general war in order to achieve their diplomatic goals. If Russia did not receive the support of its partners, it was not unlikely that the alliance would break up.
Russian mobilization on July 30 is often seen as the act that made war inevitable, and occasionally Russia is painted as the villain of the piece. Sean McMeekin in "The Russian Origins of the First World War" (2011) argued that Russia's desire for Constantinople and the Turkish Straits was a prime driver for war. Much the same criticism can be directed at this notion as was leveled at Fischer's interpretation of the "September Program," which proposed the creation of a European system that Germany would dominate completely. The fact that during the war a government develops extensive war aims does not mean the state went to war to achieve them.
In the standout chapter of the essay collection "The Outbreak of the First World War" (Cambridge, 305 pages, $34.99), Ronald P. Bobroff offers a nuanced study of Russia's actions in the July Crisis. Enfeebled by defeat by Japan in 1904-05 and by the subsequent abortive revolution, the Russians had perceived Germany as the major threat in economic and diplomatic spheres for some time. Failure to respond in 1914, it was believed, would have undermined Russia's status as a great power. Enough was enough. In July 1914, to quote Mr. Bobroff, "the Russians reluctantly stood their ground, because they could no longer see any alternative." France certainly urged its Russian ally to stand firm. The nightmare for Paris was that the Triple Entente would collapse, leaving France to face Germany on its own.
"The Outbreak of the First World War," edited by Jack S. Levy and John A. Vasquez, is a fruitful collaboration of historians and political scientists that contains much high-class scholarship. The editors' introduction says some interesting things about the differing perspectives of the two scholarly disciplines on the subject. The four essays on preventive war—addressing the notion that Germany or Austria-Hungary or Russia was acting to smash a rising rival—for instance, give multifaceted views on a topic that was once central to the debate but that has taken a back seat of late. As have causal questions about July 1914: "A good explanation for the First World War," the editors point out, "should explain not only why war occurred in 1914, but why it did not occur before."
London, Paris and St. Petersburg had come together in a loose grouping that reflected both a fear of Germany and a desire to defuse long-running colonial rivalries. The British and French armies and navies had made joint plans, but there was no guarantee they would be honored by the British government in time of war. The ruling Liberals, led by Prime Minister H.H. Asquith, were an uneasy coalition that included men such as Winston Churchill and Sir Edward Grey, who recognized the importance to British security of supporting France in the face of German aggression, and John Burns and John Morley, who were to resign in protest at the move to war. The Welsh radical David Lloyd George was the key man in the cabinet. If he had stood out against war, Asquith's government may well have collapsed.
In the end, the maladroit German decision to invade Belgium on August 4 persuaded Lloyd George in favor of war. The brutal attack on a small neutral state in defiance of international agreements gave the British a standard around which all parts of the population could rally. It is entirely possible that had Germany refrained from invading Belgium, Britain would have stayed out of the war.
The British historian David Stevenson neatly summed up the relationship between structure and agency: "The European peace might have been a house of cards, but someone still had to topple it." War was not inevitable; it occurred because key individuals in Austria-Hungary and Germany took conscious decisions to achieve diplomatic objectives, even at the cost of war with Russia and France. The actions of the Great Powers in limiting the damage during the previous Balkan crises strongly suggests that, had the Austrians and Germans wished, the crisis of summer 1914 could have been resolved by the international community. Serbia could have been isolated and punished but left its independence. On this occasion, however, Austria-Hungary and Germany wanted war with Serbia and accepted the risk of escalation.
The War Guilt clause of the Versailles Treaty got it right: The outbreak of World War I was caused by "the aggression of Germany and her allies."
THE BOOKS OF AUGUST (indicações de Sheffield)
'A Mad Catastrophe,' 'July Crisis' and 'The Month that Changed the World' are books by academic historians that were written with an eye on the wider market and are very accessible to the general reader (Geoffrey Wawro's book exceptionally so). Yet, given the number of books on the origins of World War I appearing in this centennial year, there is a risk that older works might be overlooked. New books are not necessarily the best on any subject.
The Origins of the War  of 1914 (1943)by Luigi Albertini, remains a text of the utmost importance, acknowledged as the seminal work by modem historians. Albertini was an Italian journalist who in the 1930s interviewed many of the participants in the July Crisis and studied the mass of available documentation. His three-volume account is a detailed chronology of the events that lead to war and contains many astute insights.
Russia and the Origins of the First World War (1983) by D.C.B. Lieven is the classic study of the subject, showing how Russia tried, unsuccessfully, to deter its enemies in 1914. He acknowledges the growing German fears of Russian power but argues they were exaggerated.
The Origins of the First World War (2010) by William Mulligan is a short synthesis of modern research. He argues that a general war was far from inevitable; indeed, it was avoidable. His attention to the events of July 1914 prefigures the work of recent historians.
An Improbable War? (2007) edited by Holger Afflerbach and David Stevenson, is a series of essays loosely grouped around the question of whether the war of 1914 was 'improbable.' Holger Afflerbach argued that it was. Economic and cultural ties between states made general war utterly unlikely. Other contributors, including Samuel Williamson and John Röhl disagreed, and the result is one of the most stimulating books ever written on the vexed question of the origins of the war.
Dance of the Furies: Europe and the Outbreak of World War I (2011) by Michael S. Neiberg, examines attitudes before the war and in the initial months of the conflict. He shows just how wide of the mark is the notion that Europeans were universally rejoicing when war broke out. Only after the war was under way did patriotic belligerency become the norm.
—Mr. Sheffield holds the chair of war studies at the University of Wolverhampton. His "A Short History of the First World War" will be published in October.
http://online.wsj.com/articles/book-review-the-world-war-i-blame-game-1403302608
 
 
 
 

62 - Historiador comenta a Primeira Guerra Mundial


Historiador Christopher Clark, autor do excelente "Os Sonâmbulos" fala sobre relação entre Primeira Guerra Mundial e conflitos atuais

 

por Vivian Oswald, correspondente em Londres

LONDRES - Foi na madrugada de 11 de junho de 1903, em Belgrado, que teria começado a contagem regressiva para o conflito que arrastou 65 milhões de soldados aos campos de batalha, derrubou três impérios, matou 20 milhões e feriu outros 21 milhões de pessoas. Rebeldes invadiram o palácio real, cortaram a eletricidade em uma explosão e, depois de uma longa perseguição à luz de velas pelos corredores e cômodos do castelo, finalmente encontraram e mataram o rei Alexandre I e a mulher, escondidos em um vestíbulo. É com este episódio que o professor de História da Universidade de Cambridge Christopher Clark dá início à narrativa eletrizante e minuciosa (a camisa de seda vermelha que o rei vestiu às pressas para não ser descoberto sem roupas é um dos detalhes) de “Os sonâmbulos — Como eclodiu a Primeira Guerra Mundial”, que se tornou um best-seller na Europa no ano passado e está sendo lançado no Brasil pela Companhia das Letras.

A semente da Primeira Guerra mundial — o confronto que, segundo Clark, está por trás de todos os horrores do século XX — havia sido plantada em 1903 pela rede terrorista Mão Negra, até então secreta. O mesmo grupo foi o responsável, anos depois, pelo assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo, em 28 de junho de 1914, episódio considerado o estopim da guerra. O que aconteceu entre a morte do arquiduque e o primeiro disparo nas trincheiras, porém, não foi como muitos aprenderam nas escolas, de acordo com Clark. Diferentemente do que a literatura destes últimos 100 anos ensina, ele afirma que a Alemanha não foi a única responsável pela escalada da tensão. Outros tiveram a sua parcela de culpa: Império Austro-Húngaro, França, Rússia, Grã-Bretanha e Itália, que, embora de fato não quisessem uma guerra, deixaram-se levar para o conflito como sonâmbulos.

— Todos contribuíram. Não adianta apenas apontar o dedo para os alemães. Os “mocinhos” também tiveram a sua parcela de responsabilidade nos conflitos — diz o historiador ao GLOBO.

A reação à análise de Christopher Clark deixou-o em uma posição desconfortável. Foi acusado por especialistas de eximir a Alemanha da culpa pela Primeira Guerra e aclamado por alguns grupos — sobretudo alemães — justamente por tê-lo feito. Antes mesmo de ser perguntado sobre o assunto, Clark garante que as críticas não o incomodam e são saudáveis para o debate:

— Não estou tirando a responsabilidade da Alemanha sobre o que aconteceu. Até porque os alemães têm uma substancial parcela de culpa — diz Clark, ressaltando que as origens da guerra devem ser estudadas à luz do cenário europeu de então, considerando-se os vários filtros da época. — Depois da guerra com armas nos campos de batalha, veio a guerra dos documentos — diz.

Não bastasse a quantidade maciça de informações sobre a guerra, com mais de 25 mil volumes e artigos, a maioria dos documentos oficiais produzidos pelas nações à época trazia diferentes visões dos fatos. Os 57 volumes do “Die Grosse Politik”, por exemplo, com os 15.889 documentos divididos por 300 assuntos, encarregou-se de tirar dos ombros alemães o ônus da culpa refletida no Tratado de Versalhes.

RISCO DE MANIPULAÇÃO E DESTRUIÇÃO DE DOCUMENTOS

Outros países também deram destaque ao que queriam que ficasse para a posteridade. É como se qualquer ponto de vista pudesse ser comprovado “a partir de uma seleção de documentos”, diz. Na Rússia, boa parte dos registros se perderam durante a guerra civil que levou os bolcheviques ao poder. E a União Soviética nunca teria compilado documentos de maneira sistemática para rivalizar com as edições inglesas, francesas, alemães ou austríacas.

— Não estou menosprezando esses documentos. Eles são importantíssimos. Não são manipulados, mas têm omissões — afirma Clark. — O problema de 1914 não é que sabemos pouco, pelo contrário, sabemos demais. Há uma oferta oceânica de informações. Mas existe o risco de destruição das fontes, o que significa que algumas informações podem não chegar a público

Tendo como pano de fundo uma Europa em crise, onde não havia transparência nem confiança, os líderes da época tomaram as suas decisões com base nas informações de que dispunham, em estereótipos dos inimigos e nas interpretações que eram capazes de fazer dos fatos. Para Clark, contribuíram para este cenário cinzento o medo que as elites no poder tinham da ascensão do proletariado e dos partidos socialistas, e uma espécie de “crise de masculinidade”, a partir da qual os homens que estavam no comando da situação tentavam se afirmar.

— É claro que não queriam a guerra, mas correram o risco. Eram muitos atores, dos Bálcãs até Romênia, Bulgária e Itália. Todos eram independentes e tomavam decisões autônomas. Por isso, considero este o evento mais complexo do século XX.

Em uma crítica elogiosa ao livro, a revista “Foreign Affairs” afirma que a interpretação de Clark “não apenas captura as tendências na historiografia moderna da Primeira Guerra, mas também destaca as semelhanças (e algumas diferenças) no processo de decisão dos conflitos contemporâneos”.

Enquanto escrevia a conclusão do livro, em plena crise financeira na zona do euro, Clark destacou que os homens de 1914 são “nossos contemporâneos”. Segundo ele, as diferenças são tão relevantes quanto as semelhanças. “Pelo menos os ministros encarregados de lidar com a crise na zona do euro concordaram em linhas gerais sobre o que era o problema — em 1914, por outro lado, um abismo de perspectivas éticas e políticas minou o consenso e acabou com a confiança”, afirma. E termina: “Mas se a crise financeira global recente teve como pano de fundo a difusão de poderes e responsabilidades sob um único sistema político-financeiro, a complexidade de 1914 está justamente no fato de terem sido interações rápidas entre centros de poder autônomos fortemente armados confrontando diferentes tipos de ameaças em condições de alto risco e pouca confiança e transparência”.

'O MUNDO DE HOJE NÃO É TRANSPARENTE', DIZ CLARK

Clark observa que a crise na Ucrânia foi mais um episódio que fez lembrar o momento histórico de 1914. Já não se trata da disputa de poder entre dois blocos, como acontecia durante a Guerra Fria. Há outras potências em questão, e a China é uma delas, além da Turquia e o Irã:

— O mundo de hoje não é transparente e os níveis de confiança são baixos — diz ele, fazendo uma comparação com a Primeira Guerra. — Naquela época, duas potências centrais enfrentavam um trio de impérios mundiais nas periferias leste e oeste da Europa. Hoje, uma coalizão ampla de estados da Europa Ocidental e Central se uniu contra as intervenções da Rússia na Ucrânia. Mas o incansável e ambicioso reino do Kaiser de 1914 pouco se parece com a União Europeia, uma ordem internacional em que a paz é garantida por diferentes atores estatais, uma espécie de balanço de poder, que não consegue projetar poder nem formular política externa.

Recentemente,Clark voltou a ser acusado de deixar de lado os “mocinhos” e tomar partido dos “bandidos” ao afirmar que a crise na Ucrânia, que começou com protestos nas ruas no final do ano passado e culminou na derrubada do poder local e a anexação da Crimeia pela Rússia em fevereiro, não foi provocada apenas pelo presidente russo, Vladimir Putin. Os países do Ocidente, segundo ele, também têm a sua parcela de culpa ao interferir nos problemas domésticos de Kiev e apoiar a derrubada do presidente democraticamente eleito.

Perguntado sobre que lições o mundo poderia tirar do conflito de 100 anos atrás, ele é taxativo:

— Não é lição. 1914 é um oráculo, um alerta importante sobre como os custos podem ser terríveis quando a política falha, o diálogo acaba e o compromisso se torna impossível.

sábado, 15 de março de 2014

61 - Crise na Ucrânia: algumas observações feitas no Facebook

Tentei publicar no Blogger alguns textos sobre a crise na Ucrânia, mas não consegui por problemas técnicos. Acabei publicando esses textos no Facebook. Agora parece que o Blogger está normalizado. Seguem as publicações.

Texto 1

 Graças ao Facebook, recuperei o contato com velhos amigos, entre eles Roy Hutchinson. Roy e eu fomos colegas no que hoje chamamos de Ensino Fundamental, no Rio de Janeiro na década de 1970. Recuperamos o contato depois de quase 35 anos. Hoje ele vive com a família na Europa Oriental. Há alguns dias, perguntei ao Roy sobre a crise na Ucrânia, país bem próximo de onde reside. Além de trabalhar numa área que exige muita informação, Roy convive diariamente com pessoas que passaram pela experiência de viver sob o domínio russo e soviético. Ele falou sobre a apreensão com os desdobramentos da crise e que acredita que a UE e os EUA não vão e não têm como impedir o avanço russo na Criméia e talvez em partes da Ucrânia. Lembrou o caso da Geórgia, invadida em 2008. Disse que Putin deve ganhar politicamente mas, a médio ou longo prazo, a Rússia vai perder em termos de isolamento econômico. Fez também comparações com a expansão alemã na Europa em 1938. Concordei com sua análise. Mandei para ele as minhas observações, que seguem abaixo:

A Rússia (ou se preferir, Putin) vai tentar recuperar o que puder dos antigos territórios soviéticos (entenda, territórios do Império Russo czarista), especialmente aqueles com maioria ou expressiva presença étnica russa. Os motivos são variados: interesses econômicos e estratégicos, busca de prestígio político junto ao público interno e externo, revanchismo nacionalista associado ao inconformismo com a dissolução da URSS e a perda de influência mundial e regional, entre outros. Parece que Putin age, em parte, para atender às pressões de nacionalistas pan-russos como Alexander Rutskoy (vice-presidente da Rússia que tentou derrubar o Yeltsin em 1993) e Aleksander Dugin, ideólogo de um partido com nome sinistro de Nacional-Bolchevismo, que, há uns dez anos, criticou Putin por não ter recuperado a Ucrânia. Esses grupos extremistas, ao que tudo indica, tem um espaço nada desprezível no cenário político russo e parecem cativar parte da opinião pública do país, ainda que não sejam majoritários em eleições. Não que Putin seja refém desses grupos, mas ele precisa lidar com ressentimentos e revanchismos espalhados no país e tentar canalizá-los em seu proveito. É muito difícil para um dirigente russo sobreviver politicamente desconsiderando esse tipo de nacionalismo.

Por outro lado, não é a primeira vez que a Rússia tenta recuperar territórios perdidos numa situação pós-revolucionária (considero que o que aconteceu na URSS em 1991 foi uma revolução, mas isso é outra questão). Em 1917-1921, em meio ao caos da revolução comunista e da guerra civil, o Império Russo desintegrou-se: Finlândia, Polônia, os países bálticos, GEÓRGIA e UCRÂNIA ficaram independentes. A Bessarábia foi incorporada à Romênia. Lênin e os bolcheviques fingiram aceitar essas perdas, mas na primeira oportunidade trataram de recuperar pelo menos parte daqueles territórios. Lênin não conseguiu restaurar o poder russo (agora travestido em poder comunista) na Polônia, como você bem sabe, porque foi derrotado na Guerra Soviético-Polonesa de 1919-1921, um dos conflitos decisivos do século XX. Mas ele conseguiu um acordo de partilha da Ucrânia com a Polônia (fato pouco lembrado), acabando de vez com a primeira independência ucraniana que, diga-se de passagem, foi caótica. Em 1921, Lênin reconquistou a Geórgia. A França ajudou a Polônia a se defender, mas, de uma forma geral, as potências ocidentais nada fizeram ou puderam fazer para conter esse início de restauração do império russo. Sob a direção de Stalin, a Rússia continuou avançando ou recuperando territórios. Em 1939, depois do famoso acordo de partilha da Polônia com a Alemanha nazista, a parte leste do território polonês foi anexada à URSS. Grã-Bretanha e França declaram guerra à Alemanha por isso, mas não à URSS. Em 1940, a Bessarábia foi retomada e os países bálticos reconquistados (a URSS foi expulsa da Liga das Nações por isso). Depois da guerra, a Finlândia foi neutralizada (parte do seu território, porém, foi anexado). Na época da Guerra Fria, as intervenções soviéticas na Hungria (1956) e na Tchecoslováquia (1968), bem como seu envolvimento na construção do Muro de Berlim (1961), foram publicamente condenadas e causaram tensão internacional, mas foram aceitas como fatos consumados, ocorridas em áreas de influência soviética.

Obviamente, o cenário pós-1991 não é o mesmo do pós-1918, mas existem algumas semelhanças interessantes, como forças ou tendências centrípetas de restauração imperial, reforçadas por questões étnicas. Você citou o caso da Geórgia (2008). Curiosamente, a Ucrânia e a Geórgia foram os primeiros países recuperados pelos bolcheviques nos anos pós-dissolução do Império Russo. E detalhe: em 1920-1921, a Rússia estava em frangalhos, mergulhada na crise econômica e faminta, muito mais vulnerável e fraca do que hoje. Ainda assim, o Ocidente não teve interesse, vontade ou força para agir naqueles anos. Não acho que a história seja cíclica, mas que às vezes ela coincide, coincide.


Texto 2

Recebi de um amigo, Roy, dois textos interessantes sobre a crise na Ucrânia. Os links dos textos estão no final dos meus comentários.

O primeiro artigo é de Henry Kissinger, famoso secretário de estado dos EUA em 1973-1977. Saiu no Washington Post, mas o Estadão tem uma tradução.

Kissinger, o eterno realista, defende um acordo que asseguraria a independência da Ucrânia e manteria a Criméia sob controle ucraniano, mas com grande autonomia. Importante: a Ucrânia não entraria na OTAN. Ele diz o que muitos evitam dizer: "O Ocidente precisa entender que, para a Rússia, a Ucrânia jamais será apenas um país estrangeiro. A Ucrânia fez parte da Rússia durante séculos e suas histórias já estavam entrelaçadas antes disso." Do ponto de vista russo, a independência (ou secessão) da Ucrânia foi e é uma dura concessão, muito difícil de engolir. Outros três comentários interessantes desse seguidor da realpolitik:
1. "A política externa é a arte de estabelecer prioridades.
2. "A Ucrânia é um país independente há 23 anos. Antes, manteve-se sob algum tipo de domínio estrangeiro desde o século XIV. Não é de surpreender que seus líderes não tenham aprendido a arte do compromisso, e menos ainda a perspectiva histórica."
3. No "Ocidente, a demonização de Vladimir Putin não é uma política, mas um álibi para a ausência dela".
O segundo texto é de Ruslan Pukhov, analista de defesa russo. Seu artigo saiu no New York Times. Não encontrei uma tradução em português.
Segundo Pukhov, Putin não quer anexar a Criméia e nem deseja a sua independência. Ele quer que a Criméia continue sendo parte da Ucrânia, porém com o máximo de autonomia. Com isso:
1. A Criméia seria governada por russos locais (a maioria étnica crimeiana), mas que continuariam sendo cidadãos da Ucrânia.
2. O governo crimeiano autônomo adotaria uma política pró-Rússia, por exemplo, assegurando a presença da marinha russa na estratégica cidade portuária de Sebastopol
3. Sendo cidadãos ucranianos, os russos da Criméia e de outras regiões da Ucrânia, mesmo minoritários, participariam da política ucraniana (eleições, presença no legislativo). Com isso, a Rússia teria mais influência sobre a Ucrânia.
Assim, de acordo com Pukhov, a independência dos territórios ucranianos de maioria russa, inclusive a Criméia, tiraria de Putin e da Rússia a possibilidade de influenciar internamente a política da Ucrânia. Pode ser e faz sentido. Contudo, possíveis confrontos armados entre ucranianos e russos podem dar outra dimensão a crise. A situação pode fugir ao controle (se é que ela está sob algum controle) e tornar uma negociação realista "a la Kissinger" inviável.
 

domingo, 2 de março de 2014

60 - 2014 será o ano da farsa ou da tragédia?


Meu comentário meio besta e talvez exagerado, nesse início de Carnaval, sobre coisas alheias aos festejos:

2014 será o ano da farsa ou da tragédia?

É possível? Logo no centenário da Primeira Guerra Mundial? Como é sabido, a guerra de 1914 foi precipitada por disputas territoriais e étnicas no Leste europeu entre a Áustria-Hungria, aliada da Alemanha, e a Sérvia, apoiada pela Rússia. No caso, o território disputado era a Bósnia-Herzegovina, anexada pelos austro-húngaros (1908) e reivindicada pela Sérvia. Uma solução diplomática e consensual para a "Questão da Bósnia" era difícil. O nacionalismo sérvio fomentava o iugoslavismo (ideal de unir os povos "eslavos do sul", que incluía os bósnios, para criar a Iugoslávia ou Grande Sérvia), enquanto a Áustria-Hungria buscava preservar o status de grande potência e a integridade do seu império multiétnico, o que limitava sua capacidade de fazer concessões. O assassinato do herdeiro do trono da Áustria-Hungria, Francisco Ferdinando, em 28 de junho de 1914 por um separatista bósnio pró-Sérvia causou uma crise internacional que rapidamente evoluiu para uma guerra generalizada entre as grandes potências europeias. Agora, em 2014, novamente estamos vendo uma disputa territorial e étnica no Leste europeu (disputa russo-ucraniana pela Criméia, nacionalismo antirrusso ucraniano, necessidade da Rússia de preservar ou mesmo ampliar o status de grande potência) ameaçando a paz no continente. Está ficando cada vez mais difícil para os dois lados (Rússia e Ucrânia) fazerem concessões. Não há como escapar das famosas palavras de Karl Marx, comentando Hegel: os fatos e personagens importantes da história ocorrem, sim, duas vezes, "mas a primeira como tragédia e a segunda como farsa". 2014 entrará na História como o ano da farsa ou da tragédia?

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

59 - Mapas interessantes

Pessoal, segue um link para 40 mapas interessantes (em inglês):

http://www.washingtonpost.com/blogs/worldviews/wp/2014/01/13/40-more-maps-that-explain-the-world/

58 - Jango

Jango e o realismo fantástico

ARTIGO – MARCO ANTONIO VILLA
Publicado em O Globo:
 
O Brasil é um país fantástico. Mais ainda, é um país do realismo fantástico, onde ficção se mistura com história e produz releituras ao sabor dos acontecimentos. A última tem como tema a morte do ex-presidente João Goulart, o Jango, na Argentina.
A Câmara dos Deputados fez uma investigação, ouviu dezenas de testemunhas e elaborou um longo relatório. Concluiu que não havia indícios de assassinato. Em entrevista a Geneton Moraes Neto, publicada no livro “Dossiê Brasil: as histórias por trás da História recente do país”, a senhora Maria Tereza Goulart descartou qualquer suspeita de assassinato do seu marido: “Eu estava ao lado de Jango o tempo todo, nos últimos dias. Jango morreu do coração. Tinha feito um regime violento e mal controlado. Chegou a perder 17 quilos em dois meses. E estava fumando muito. O médico já tinha dito que ele não poderia fumar.”
Jango era um cardiopata. E de longa data. No México, a 10 de abril de 1962, em visita oficial, assistindo a uma exibição do balé folclórico mexicano, no Teatro Belas Artes, o presidente teve um ataque cardíaco. Ficou desfalecido por um minuto. Atendido por médicos mexicanos, ficou impossibilitado de continuar a cumprir a agenda presidencial, sendo substituído por San Tiago Dantas. No retorno ao Brasil, o grande assunto era o estado de saúde de Jango e a possibilidade de que renunciasse à Presidência. Afinal, era o segundo ataque cardíaco em apenas oito meses. Dois meses depois, quando da recepção em palácio da seleção brasileira que partiria para a Copa do Mundo no Chile, Pelé manifestou preocupação com a saúde do presidente: “Presidente, como vão estas coronárias?” E Jango respondeu: “Estão boas, mas não tanto quanto as suas.”
Às vésperas do célebre comício da Central (13 de março de 1964), seu estado de saúde inspirava cuidados. Foi advertido que poderia ter sérias complicações com o coração. Jango desdenhou e manteve seu ritmo costumeiro de vida sedentária, alimentação inadequada, excesso no consumo de bebidas e vivendo em permanente estresse. No exílio uruguaio, também devido aos problemas com o coração, foi atendido pelo dr. Zerbini. Na França, onde esteve várias vezes, foi cuidar do coração e chegou a tentar uma consulta com o dr. Christian Barnard, na África do Sul, médico que dirigiu a equipe que fez o primeiro transplante de coração.
A transformação de Jango em um perigoso adversário do regime militar — tanto que o seu assassinato teria sido planejado pela Operação Condor — não passa de uma farsa. No exílio uruguaio, especialmente nos anos 1970, não tinha qualquer atuação política.
Tudo não passa de mais uma tentativa de mitificação, da hagiografia política sempre tão presente no Brasil. O figurino de democrata, reformista e comprometido com os deserdados foi novamente retirado do empoeirado armário. Agora pelos seus antigos adversários, os petistas. Mero oportunismo. É que a secretária dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, pretende ser candidata ao Senado pelo Rio Grande do Sul. E, como boa petista, não se importa de reescrever a história ao seu bel-prazer.
O cinquentenário dos acontecimentos de março/abril de 1964 é uma boa oportunidade para rever o governo Jango. O início dos anos 1960 esteve marcado pela agudização das mais variadas contradições. O esgotamento do ciclo econômico que alcançou seu auge na presidência JK era evidente. A grande migração tinha criado uma sociedade urbana e novas demandas que os governos não sabiam como atender. A tensão gerada pela Guerra Fria azedava qualquer conflito, por mais comezinho que fosse.
É nesta conjuntura que Jango tentou governar. E foi um desastre. Raciocinava sempre imaginando algum tipo de ação que significasse o abandono da política, do convencimento do adversário. Era tributário de uma tradição golpista, típica da política brasileira da época.
Nunca fez questão de esconder seu absoluto desinteresse pelas questões mais complexas da administração pública, distantes da politicagem do dia a dia. Celso Furtado, nas suas memórias (“A fantasia desorganizada”), relatou que entregou o Plano Trienal — que buscava planejar a economia nos anos 1963-1965 — ao presidente depois de exaustivas semanas de trabalho. Jango mal passou os olhos pela primeira página. Em entrevista à revista “Playboy”, em abril de 1999, Furtado foi direto: Jango “era um primitivo, um pobre de caráter”.
No polo ideológico oposto, o embaixador Roberto Campos, também nas suas memórias (“A lanterna na popa”), contou que escreveu um documento de 30 páginas relatando os contenciosos do Brasil com os Estados Unidos, em 1962, quando da visita do presidente a Washington. San Tiago Dantas, ministro das Relações Exteriores, pediu ao embaixador que reduzisse ao máximo a extensão do texto, pois com aquele volume de páginas o presidente não leria. Obediente, o embaixador sintetizou os problemas em cinco páginas, que foram consideradas excessivas. Diminuiu para três páginas. Mesmo assim, segundo Campos, Jango não leu o documento.
As reformas de base, palavra de ordem repetida à exaustão naqueles tempos, nunca foram apresentadas no seu conjunto. A definição — ainda que vaga — apareceu somente na mensagem presidencial encaminhada ao Congresso Nacional quando do início do ano legislativo, a 15 de março de 1964. E lembrar que foram apresentadas como soluções de curto prazo — mesmo sendo mudanças estruturais — durante três anos…
Deixou um país dividido, uma economia em estado caótico e com as instituições desmoralizadas. E abriu caminho para duas décadas de arbítrio.

Marco Antonio Villa é historiador