Texto 1
Graças ao Facebook, recuperei o contato com velhos amigos, entre eles Roy Hutchinson. Roy e eu fomos colegas no que hoje chamamos de Ensino Fundamental, no Rio de Janeiro na década de 1970. Recuperamos o contato depois de quase 35 anos. Hoje ele vive com a família na Europa Oriental. Há alguns dias, perguntei ao Roy sobre a crise na Ucrânia, país bem próximo de onde reside. Além de trabalhar numa área que exige muita informação, Roy convive diariamente com pessoas que passaram pela experiência de viver sob o domínio russo e soviético. Ele falou sobre a apreensão com os desdobramentos da crise e que acredita que a UE e os EUA não vão e não têm como impedir o avanço russo na Criméia e talvez em partes da Ucrânia. Lembrou o caso da Geórgia, invadida em 2008. Disse que Putin deve ganhar politicamente mas, a médio ou longo prazo, a Rússia vai perder em termos de isolamento econômico. Fez também comparações com a expansão alemã na Europa em 1938. Concordei com sua análise. Mandei para ele as minhas observações, que seguem abaixo:
A Rússia (ou se preferir, Putin) vai tentar recuperar o que puder dos antigos territórios soviéticos (entenda, territórios do Império Russo czarista), especialmente aqueles com maioria ou expressiva presença étnica russa. Os motivos são variados: interesses econômicos e estratégicos, busca de prestígio político junto ao público interno e externo, revanchismo nacionalista associado ao inconformismo com a dissolução da URSS e a perda de influência mundial e regional, entre outros. Parece que Putin age, em parte, para atender às pressões de nacionalistas pan-russos como Alexander Rutskoy (vice-presidente da Rússia que tentou derrubar o Yeltsin em 1993) e Aleksander Dugin, ideólogo de um partido com nome sinistro de Nacional-Bolchevismo, que, há uns dez anos, criticou Putin por não ter recuperado a Ucrânia. Esses grupos extremistas, ao que tudo indica, tem um espaço nada desprezível no cenário político russo e parecem cativar parte da opinião pública do país, ainda que não sejam majoritários em eleições. Não que Putin seja refém desses grupos, mas ele precisa lidar com ressentimentos e revanchismos espalhados no país e tentar canalizá-los em seu proveito. É muito difícil para um dirigente russo sobreviver politicamente desconsiderando esse tipo de nacionalismo.
Por outro lado, não é a primeira vez que a Rússia tenta recuperar territórios perdidos numa situação pós-revolucionária (considero que o que aconteceu na URSS em 1991 foi uma revolução, mas isso é outra questão). Em 1917-1921, em meio ao caos da revolução comunista e da guerra civil, o Império Russo desintegrou-se: Finlândia, Polônia, os países bálticos, GEÓRGIA e UCRÂNIA ficaram independentes. A Bessarábia foi incorporada à Romênia. Lênin e os bolcheviques fingiram aceitar essas perdas, mas na primeira oportunidade trataram de recuperar pelo menos parte daqueles territórios. Lênin não conseguiu restaurar o poder russo (agora travestido em poder comunista) na Polônia, como você bem sabe, porque foi derrotado na Guerra Soviético-Polonesa de 1919-1921, um dos conflitos decisivos do século XX. Mas ele conseguiu um acordo de partilha da Ucrânia com a Polônia (fato pouco lembrado), acabando de vez com a primeira independência ucraniana que, diga-se de passagem, foi caótica. Em 1921, Lênin reconquistou a Geórgia. A França ajudou a Polônia a se defender, mas, de uma forma geral, as potências ocidentais nada fizeram ou puderam fazer para conter esse início de restauração do império russo. Sob a direção de Stalin, a Rússia continuou avançando ou recuperando territórios. Em 1939, depois do famoso acordo de partilha da Polônia com a Alemanha nazista, a parte leste do território polonês foi anexada à URSS. Grã-Bretanha e França declaram guerra à Alemanha por isso, mas não à URSS. Em 1940, a Bessarábia foi retomada e os países bálticos reconquistados (a URSS foi expulsa da Liga das Nações por isso). Depois da guerra, a Finlândia foi neutralizada (parte do seu território, porém, foi anexado). Na época da Guerra Fria, as intervenções soviéticas na Hungria (1956) e na Tchecoslováquia (1968), bem como seu envolvimento na construção do Muro de Berlim (1961), foram publicamente condenadas e causaram tensão internacional, mas foram aceitas como fatos consumados, ocorridas em áreas de influência soviética.
Obviamente, o cenário pós-1991 não é o mesmo do pós-1918, mas existem algumas semelhanças interessantes, como forças ou tendências centrípetas de restauração imperial, reforçadas por questões étnicas. Você citou o caso da Geórgia (2008). Curiosamente, a Ucrânia e a Geórgia foram os primeiros países recuperados pelos bolcheviques nos anos pós-dissolução do Império Russo. E detalhe: em 1920-1921, a Rússia estava em frangalhos, mergulhada na crise econômica e faminta, muito mais vulnerável e fraca do que hoje. Ainda assim, o Ocidente não teve interesse, vontade ou força para agir naqueles anos. Não acho que a história seja cíclica, mas que às vezes ela coincide, coincide.
Texto 2
Recebi de um amigo, Roy, dois textos interessantes sobre a crise na Ucrânia. Os links dos
textos estão no final dos meus comentários.
O
primeiro artigo é de Henry Kissinger, famoso secretário de estado dos EUA em
1973-1977. Saiu no Washington Post, mas o Estadão tem uma tradução.
Kissinger,
o eterno realista, defende um acordo que asseguraria a independência da Ucrânia
e manteria a Criméia sob controle ucraniano, mas com grande autonomia.
Importante: a Ucrânia não entraria na OTAN. Ele diz o que muitos evitam dizer:
"O Ocidente precisa entender que, para a Rússia, a Ucrânia jamais será
apenas um país estrangeiro. A Ucrânia fez parte da Rússia durante séculos e
suas histórias já estavam entrelaçadas antes disso." Do ponto de vista
russo, a independência (ou secessão) da Ucrânia foi e é uma dura concessão,
muito difícil de engolir. Outros três comentários interessantes desse seguidor da
realpolitik:
1. "A
política externa é a arte de estabelecer prioridades.
2. "A
Ucrânia é um país independente há 23 anos. Antes, manteve-se sob algum tipo de
domínio estrangeiro desde o século XIV. Não é de surpreender que seus líderes
não tenham aprendido a arte do compromisso, e menos ainda a perspectiva
histórica."
3. No "Ocidente, a demonização de Vladimir Putin
não é uma política, mas um álibi para a ausência dela".
O segundo texto é de Ruslan Pukhov, analista de defesa
russo. Seu artigo saiu no New York Times. Não encontrei uma tradução em
português.
Segundo Pukhov, Putin não
quer anexar a Criméia e nem deseja a sua independência. Ele quer que a Criméia
continue sendo parte da Ucrânia, porém com o máximo de autonomia. Com isso:
1. A Criméia seria governada por russos locais
(a maioria étnica crimeiana), mas que continuariam sendo cidadãos da Ucrânia.
2. O governo crimeiano autônomo adotaria uma
política pró-Rússia, por exemplo, assegurando a presença da marinha russa na
estratégica cidade portuária de Sebastopol
3. Sendo cidadãos ucranianos, os
russos da Criméia e de outras regiões da Ucrânia, mesmo minoritários,
participariam da política ucraniana (eleições, presença no legislativo). Com
isso, a Rússia teria mais influência sobre a Ucrânia.
Assim, de acordo com Pukhov, a independência dos
territórios ucranianos de maioria russa, inclusive a Criméia, tiraria de Putin
e da Rússia a possibilidade de influenciar internamente a política da Ucrânia.
Pode ser e faz sentido. Contudo, possíveis confrontos armados entre ucranianos
e russos podem dar outra dimensão a crise. A situação pode fugir ao controle
(se é que ela está sob algum controle) e tornar uma negociação realista "a
la Kissinger" inviável.
O link para o artigo de Kissinger é
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,como-resolver-a-crise-ucraniana,1137996,0.htm
O link para o artigo de Pukhov é
http://www.nytimes.com/2014/03/05/opinion/what-putin-really-wants.html?_r=0
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