A GRANDE
MÍDIA E A DESINFORMAÇÃO
COMO OS
GRANDES JORNAIS E AS MÍDIAS SOCIAIS TENTAM RESPONDER À INVENÇÃO DELIBERADA DE
FATOS
Nelson de Sá - Folha de SP, 19 de fevereiro de 2017
RESUMO
Texto compila iniciativas de
publicações estrangeiras com vistas a frear a disseminação de notícias falsas.
Autor mostra que Facebook e Google, atores decisivos para o fenômeno adquirir o
vulto atual, financiam redes de checagem, apesar dos dividendos que auferem da
leitura maciça de reportagens enviesadas.
TEXTO
Em 8 de abril de 1984, o "New York Times" publicou a
reportagem "O império em expansão de Donald Trump". Descrevia-se um
evento esportivo no qual uma multidão, incluindo "alguns dos mais ricos,
poderosos e famosos nova-iorquinos", cercava aos gritos o empresário,
então com 37 anos, como se fosse "estrela de rock".
Trump não reclamou.
Ao longo do último mês, já presidente dos Estados Unidos e
desgostoso da cobertura cada vez mais negativa, o mesmo Trump chamou o jornal
de "fake news" (notícia ou noticiário falso) pelo menos três vezes
-talvez tenha aumentado esse número desde a conclusão desta edição, na
quinta-feira (16), pois é sua leitura diária e alvo preferencial no Twitter.
A exemplo de outros políticos, ele usa a seu favor uma expressão
criada para descrever outra coisa, uma pandemia anterior à eleição americana:
sites e indivíduos que produzem narrativas sensacionalistas, aparentemente jornalísticas,
mas falsas, para ganhar dinheiro com publicidade em plataformas como
Facebook e Google.
Em sua versão distorcida, "fake news" tornou-se clichê
para diversos governantes interessados em desmerecer o jornalismo crítico ou
simplesmente verdadeiro.
Em recente entrevista ao Yahoo! News, por exemplo, o ditador da
Síria, Bashar al-Assad, descartou como notícia falsa o relatório da Anistia
Internacional sobre assassinatos em prisões de seu país.
O "NYT" se armou para o combate com Trump e seus tuítes,
eles próprios uma fonte de falsidades.
Três dias antes da posse, o jornal anunciou ter separado US$ 5
milhões (R$ 15,5 milhões) adicionais para a cobertura do novo governo. Desde então,
tem publicado enunciados como "Trump não vai voltar atrás em sua mentira
sobre fraude eleitoral. Aqui estão os fatos".
O diário tomou a frente na reação institucional aos desmandos do
presidente americano, mas os outros dois principais jornais do país, "The
Washington Post" e "The Wall Street Journal", também adotaram
cobertura obstinada, ainda que menos agressiva. Evitam, por exemplo, usar a
palavra "mentira".
O "WP" tem há cinco anos uma estrutura de checagem de
fatos, que usa uma escala de Pinóquios para classificar informações
questionáveis, e o "NYT" admite montar a sua, mas a resposta do
jornalismo profissional americano à chamada era da pós-verdade tem sido
simples: mais e melhor jornalismo.
Já se fala até em "guerra de reportagem" entre os grandes
jornais americanos.
JORNALISMO FORTE
A resposta não se restringe aos EUA. Em levantamento do Instituto
Reuters para o Estudo do Jornalismo, da Universidade de Oxford (Inglaterra),
feito com 143 editores e executivos de veículos de comunicação de 24 países,
inclusive o Brasil, 70% afirmaram que a preocupação generalizada com notícias
falsas fortalecerá o jornalismo em 2017.
Para tanto, segundo um editor irlandês destacado no estudo, a
mídia de qualidade precisa ser "mais afirmativa sobre seu jornalismo e
sobre como ele é feito, articular os valores que sustentam esse
jornalismo". No "NYT", desde a eleição de Trump, os anúncios de
assinatura levam frases como "Verdade. É vital para a democracia".
O combate contra as notícias falsas parte de base mais firme do
que se pensava. Segundo levantamento do Centro de Pesquisas Pew (EUA), 56% dos
americanos consumidores de informação conseguem identificar a fonte da notícia.
Para o estudo, o resultado é positivo e "especialmente relevante à luz das
notícias fabricadas".
A pesquisa também mostra, porém, que essa capacidade de
identificação cai se a notícia é acessada via rede social: 10% dos
entrevistados chegaram a errar, apontando como fonte o Facebook, que não produz
notícias, só as distribui.
É mais uma indicação de que o foco da proliferação de notícias falsas
está nas plataformas de tecnologia, que estimulam a produção e o consumo de
enunciados sensacionalistas e sem base. A solução, portanto, não pode partir só
das organizações jornalísticas.
Na política, o fenômeno chamou a atenção pela primeira vez com o
"brexit", o plebiscito que decidiu em junho de 2016 pela saída do
Reino Unido da União Europeia.
Evidenciou-se que a persistência das mentiras na campanha não se
devia ao vilão tradicional -o magnata Rupert Murdoch, dono de jornais e canais
de televisão-, e sim à rede social de Mark Zuckerberg.
Como identificou Emily Bell, diretora do Centro Tow para o
Jornalismo Digital, da Universidade Columbia (EUA), foi nos ambientes fechados
do Facebook e de outras plataformas, nas ilhas que só compartilham conteúdo de
quem pensa da mesma maneira, que as notícias falsas se difundiram sem
questionamento, imunes à busca pelo contraditório que o jornalismo costuma
empreender.
De maneira geral, segundo levantamento conjunto da Universidade
Columbia com o Instituto Nacional de Pesquisa em Informática e Automação, da
França, 59% dos links compartilhados nas mídias sociais não são sequer abertos
por quem os compartilha.
No comentário de um dos pesquisadores, "as pessoas se mostram
mais dispostas a compartilhar um texto do que a lê-lo, formam opinião baseada
num sumário ou num sumário de um sumários". Um comportamento típico do
"consumo contemporâneo de informação", em que a capacidade de atenção
é cada vez menor.
A questão tem forte viés financeiro e não se limita à mídia
social. Facebook e Google, plataformas que duopolizam a publicidade digital,
abocanhando 68% do total nos EUA, têm modelos de negócio que recompensam
usuários e sites que ajudem a trazer tráfego para os seus inventários. Um
tráfego que tende a ser tanto maior quanto mais escandalosa a postagem, ainda que
falsa.
FACEBOOK
Para o analista Frederic Filloux, "deixando de lado a
necessidade de dar fim ao seu pesadelo atual de relações públicas", devido
às acusações de que ajudou a eleger Trump, "o Facebook não tem interesse
objetivo em corrigir seu problema de notícias falsas". Ou seja, não tem
interesse em afugentar seus consumidores com informações verdadeiras -e muitas
vezes desagradáveis.
Daí a proliferação de sites com notícias retumbantes e falsas
sobre a eleição americana, criados às dezenas por jovens da Macedônia em busca
de audiência nos EUA. A maioria era pró-Trump, mas não havia motivação
política; o Facebook, segundo os jovens, paga quatro vezes mais por leitor
americano.
Apesar do ceticismo quanto ao interesse objetivo do Facebook e da
primeira reação de Zuckerberg, que chamou de maluca a hipótese de que notícias
falsas tenham afetado a eleição, a plataforma começou a se movimentar, buscando
parcerias com o jornalismo profissional.
Estimulou a formação de uma rede internacional de checagem de fatos
ligada ao Instituto Poynter para Estudos de Mídia (EUA), que na reta final
acrescentou, além de checadores independentes, organizações como a rede de
televisão ABC e a agência Associated Press.
Na virada do ano, a equipe começou a confirmar ou refutar informações
veiculadas na rede social, um experimento ainda em fase de testes. O Google
promove ação paralela em seu serviço de buscas, também com checadores, tendo
estreado a iniciativa na quarta-feira (15) em países da América Latina, entre
os quais o Brasil.
O foco da atenção política ocidental, de todo modo, aos poucos
deixa os EUA e se volta para a União Europeia, onde França e Alemanha têm
eleições marcadas para abril e setembro, respectivamente.
Na primeira semana de fevereiro, Facebook e Google lançaram em
Paris um projeto conjunto de checagem de fatos, chamado CrossCheck, abrangendo
15 veículos franceses de jornalismo, como a agência France Presse, o canal de
notícias BFM e os jornais "Le Monde", "Les Échos" e
"Libération".
O CrossCheck entra no ar no dia 27 de fevereiro. Na Alemanha, já
em meados de janeiro, às pressas e ainda sem o Google, o Facebook lançou
projeto semelhante depois de uma escalada de alertas públicos, inclusive da
chanceler Angela Merkel, contra os vários sinais de notícias falsas na
plataforma.
Assustados com a ascensão da extrema-direita e com as votações nos
EUA e no Reino Unido, políticos alemães ameaçam os gigantes da tecnologia com
multas e mudanças legislativas. Entre as falsidades já constatadas estão fotos
de Merkel com um suposto terrorista e elogios de um líder do Partido Verde a um
refugiado que cometeu estupro e homicídio.
Em discurso no Parlamento, a chanceler alemã lembrou que "o
populismo e os extremismos políticos estão crescendo nas democracias
ocidentais". Em seguida, resumiu: "As opiniões não são mais formadas
como há 25 anos. Hoje temos sites falsos, reforçando opiniões com certos
algoritmos, e temos de aprender a lidar com eles".
De sua parte, os jornais alemães, que nos últimos três anos viram
ressurgir nos discursos extremistas a expressão "Lügenpresse",
imprensa mentirosa, clichê usado historicamente por Hitler, já se armam para o
combate.
NELSON DE
SÁ, 56, é repórter especial da Folha.
Assina a coluna "Toda Mídia" e o blog Cacilda no site do jornal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário