Tea Party à brasileira
Um debate com a nova direita
por Claudia Antunes
O debate acontecia no teatro do shopping Fashion Mall, em São Conrado, no Rio, oito dias depois do protesto de 15 de março, que levou milhares de pessoas às ruas contra o governo de Dilma Rousseff. Kataguiri, 19 anos, e Santos, 31, são fundadores do Movimento Brasil Livre, o MBL, que defende o impeachment de Dilma. Juntamente com o Vem pra Rua e o Revoltados Online, constitui a tríade que convocou a manifestação. Estavam acompanhados de Alexandre Santos, 26 anos, irmão de Renan, produtor dos vídeos do MBL, nos quais Kataguiri encarna um samurai de desenho animado que combate a esquerda com tiradas como “justiça social é outro nome para caridade com dinheiro alheio, ou gozar com o pau dos outros”.
Desde 1º de novembro, quando organizou o primeiro protesto contra Dilma em São Paulo, o trio do MBL já aparecia na tevê e dava entrevistas a jornais e portais. Mas as cerca de oitenta pessoas que compareceram ao teatro não eram curiosos, tampouco o público do shopping, um dos mais luxuosos do Rio. Eram em sua maioria militantes já convertidos, a quem os líderes do MBL – vestidos como profissionais liberais, de camisa sem gravata – deram dicas de como fazer amigos e ganhar adeptos.
Além do exorcista de esquerdistas, na plateia havia gente como um médico revoltado com o Mais Médicos; um senhor que frequenta o Clube Militar; oito jovens de um grupo liberal de Niterói, além de uma pequena empresária do setor de óleo e gás, aplaudida quando anunciou que seus funcionários petistas seriam os primeiros a ser demitidos devido à perda de contratos provocada pelo escândalo da Petrobras. Também estavam lá Felipe Moura Brasil, blogueiro da Veja, e Bernardo Santoro, diretor executivo do Instituto Liberal, o IL, que na campanha presidencial atuou como coach do pastor Everaldo, o candidato do Partido Social Cristão – no debate, o pastor foi elogiado por ter defendido a privatização da Petrobras no Jornal Nacional.
Kim Kataguiri e os irmãos Santos se definem como liberais quanto à economia, a favor do Estado mínimo. Direita para eles é elogio – até fizeram troça de um artigo na Folha de S.Paulo que os chamou de “centro-direita” (“Talvez porque a gente não defenda o golpe militar”). Da imprensa, só pouparam a Veja. Ficaram especialmente irritados porque o Datafolha contou 210 mil pessoas na avenida Paulista em 15 de março – depois que a Polícia Militar anunciara que a multidão havia batido a marca de 1 milhão. Os argumentos do trio pelo impeachment, porém, foram tirados de um artigo e de uma entrevista dos advogados Ives Gandra Martins e Modesto Carvalhosa publicados no jornal paulista.
Renan Santos estudou direito na USP, onde, citando Michel Foucault, disse ter conhecido a “microfísica” do poder petista. Em 2014, atuou com o irmão na campanha de Paulo Batista, candidato a deputado estadual em São Paulo pelo Partido Republicano Progressista. O vídeo em que Batista atacava a USP com seu “raio privatizador” fez sucesso na internet, mas não na urna: com menos de 19 mil votos, ele não se elegeu.
Kim Kataguiri abandonou a faculdade de economia e criou no Facebook a página Liberalismo da Zoeira. Na eleição presidencial, participou com os irmãos Santos da elaboração do vídeo Jornal do Futuro – Danilo Gentili 2018, em que o comediante apresenta um telejornal da República Bolivariana do Brasil – a foice e o martelo aparecem no canto do vídeo, o governo importa policiais cubanos e “Chico Buarque está na França, mas mandou avisar que apoia essas medidas”.
No debate, os fundadores do MBL citaram seu livro-texto, As Seis Lições, de Ludwig von Mises, economista da escola liberal austríaca, antikeynesiano e contrário a qualquer política distributivista (Milton Friedman o considerava intolerante). O livro pode ser baixado no site do IL e do Instituto Ludwig von Mises, ambos parte de um conjunto de centro de estudos de direita que vem ganhando corpo no país. O IL lista como seus parceiros o Instituto Millenium, o Instituto Ordem Livre e o Instituto de Formação de Líderes, que organiza anualmente o Fórum Liberdade e Democracia.
Guardadas as proporções, há vários pontos em comum entre o proselitismo ultraconservador no Brasil e nos Estados Unidos – onde a partir dos anos 70, tempo de recessão e crise política que resultou na renúncia de Richard Nixon, uma série de think tanks passou a desafiar o consenso social da Era Roosevelt, iniciada com o New Deal.
Como também vem se esboçando no Brasil, a direita americana ocupa, grosso modo, duas vertentes que se entrecruzam: uma, ligada às igrejas neopentecostais, dá ênfase aos “valores morais”; outra, liberal, prega cortes nos impostos e na previdência social. Os libertários, uma subcorrente desta última, se distinguem por rejeitar qualquer ingerência na vida do indivíduo, defendendo por isso a legalização das drogas. Os propagandistas dessa direita ressurgente tacharam Barack Obama de socialista e muçulmano. Seu subproduto mais recente é o Tea Party, movimento que se tornou influente no Partido Republicano e acaba de lançar seu primeiro pré-candidato à Presidência, o senador pelo Texas Ted Cruz.
Em 2008, o articulista Olavo de Carvalho, guia espiritual da ultradireita, apoiou a tese marginal mas barulhenta dos denominados birthers – a de que Obama teria nascido no Quênia e apresentara uma certidão de nascimento falsa para concorrer à Presidência. Carvalho, que já foi favorável à intervenção militar no Brasil contra uma suposta conspiração comunista, hoje é uma referência para os líderes do MBL. Kataguiri gravou conversas em vídeo com ele, disponíveis na internet. A sintonia entre os rapazes e o veterano se reflete, por exemplo, na posição de que falar de reforma política agora é diversionismo. Para não romper a unidade da direita nem tirar o foco do impeachment, o MBL não se pronuncia sobre temas como aborto, drogas, casamento gay e aquecimento global.
Tal qual a direita americana, a brasileira ataca a ampliação dos direitos sociais que aqui marcou a transição para a Nova República e a Constituição de 1988. Cultiva a aversão à elite acadêmica e vê as universidades como “antros de Marilenas Chauis” – segundo Renan Santos, uma “esquerda estética”, que anda de bicicleta e se entusiasma com as recentes vitórias eleitorais do Podemos, na Espanha, e do Syriza, na Grécia. “Eles estão se sentindo nos anos 60, é meio vintage, podem usar uma bolsa com franjinhas e uma boca de sino”, disse Santos.
Quando um rapaz do grupo de Niterói – vestindo uma camiseta com a inscrição “Menos Marx, mais Mises” – perguntou se valia a pena “tentar mudar o pessoal da Universidade Federal Fluminense”, Santos disse que achava perda de tempo. Mas ressaltou a importância de sair da internet e “tomar a rua”. Deu como exemplo a aula pública com banda de música que o MBL fez no vão do Museu de Arte de São Paulo, em janeiro, para mostrar que “é uma falácia” a reivindicação de passe livre no transporte público. “O pessoal ia lá pensando que era um show de rock e tomava liberalismo na cara”, disse Kataguiri.
Outra característica que a direita brasileira compartilha com a americana é a exploração do ressentimento de setores que se consideram prejudicados pela legislação trabalhista, a rede de proteção social para os pobres, as cotas para negros – também nos Estados Unidos, programas destinados a equalizar as oportunidades foram qualificados de “socialistas”. “O PT te culpa por ser homem, branco ou heterossexual”, disse Renan Santos. “Um empreendedor no Brasil enfrenta a Justiça trabalhista e fiscais da Receita estadual, até piores que os da Federal.”
Renan Santos e Kataguiri votaram em Aécio Neves nos dois turnos em 2014, mas demonstram fastio com o PSDB – que, a despeito de ter conclamado seus apoiadores a protestar no dia 15, ainda não aderiu à tese do impeachment. Como na simbiose que ocorreu entre setores republicanos e o Tea Party, o MBL “adoraria obrigar” o PSDB a incorporar suas ideias. “O liberalismo é totalmente minoritário no partido, fizeram privatizações a contragosto.”
Santos reconheceu que os protestos “são úteis até certo ponto” para os tucanos, que falaram em “sangrar” o governo, mas emendou: “Eles não querem que a gente traga o tema do impeachment. O ideal para o PSDB é a gente organizar manifestações todo mês até 2018, reivindicando qualquer outra coisa. Aí o Aécio ou outro candidato deles seria o favorito.”
Questionado se o MBL planejava formar um partido, Santos, ciente do sentimento antipolítica no ar, perguntou ao auditório: “Vocês veem algo de errado na gente lançar candidato?” A resposta foi não. Depois, elogiou o Partido Novo, fundado em 2011 e ainda pleiteando o registro, mas disse que não sabe como a agremiação poderá enfrentar a máquina tucana. Em sua página no Facebook, o Novo defende o fim das estatais, do voto obrigatório e do fundo partidário. Num post do dia 13 de março – quando a CUT e outros grupos fizeram um ato em defesa do governo –, considerou que a rua é para “pessoas livres”, e não para partidos e sindicatos, que devem utilizar “canais próprios de reivindicação”.
Para quem se queixa de que estão “sozinhos, sem ninguém ajudando”, os líderes do MBL demonstraram uma desconcertante autoconfiança. A plateia queria saber como pressionar Eduardo Cunha, o presidente da Câmara, a pôr o impeachment na pauta. “Dois milhões de pessoas na rua é voto. O Cunha não tem opção”, afirmou Kataguiri. (Havia um novo protesto contra Dilma convocado para 12 de abril.)
O tema da corrupção, dominante nas ruas, surgiu nas perguntas do público. Os rapazes disseram que reduzir o Estado seria uma maneira de “não deixar o dinheiro na mão do bandido”, mas ressaltaram que no momento “o problema não é a corrupção em si”. Alegaram que, enquanto peemedebistas e tucanos embolsariam o roubo, o PT o utilizaria para dominar o Legislativo. “Isso é golpe contra a República, ou Montesquieu estava louco”, disse Renan Santos.
O MBL não se furtou a alimentar a obsessão da plateia contra o Foro de São Paulo, que reúne organizações de esquerda latino-americanas. Mas atribuiu a teorias conspiratórias a especulação de que teria recebido dinheiro dos irmãos Koch, donos de um conglomerado industrial, fundadores do Instituto Cato e financiadores de causas ultraconservadoras nos Estados Unidos. O tema surgiu por causa da publicação de textos de integrantes do grupo Estudantes pela Liberdade, o EPL, no site do MBL. O EPL é a versão nacional do Students for Liberty, bancado pelo Cato.
“A elite branca está pouco se lixando para a gente”, disse Kataguiri. O trio diz que 70% de sua sobrevivência decorrem de microdoações pela internet. O resto vem de “um empresário ou outro”. O MBL não divulga nomes de doadores.
No Facebook, o Brasil Livre tem menos curtidas do que seus parceiros – e concorrentes – na convocação das manifestações. Enquanto o Vem pra Rua se diz acima das ideologias e o Revoltados Online é o mais ostensivamente raivoso, o MBL tem como alvo o público jovem – e os protestos do dia 15 tiveram uma presença forte de pessoas mais velhas e de famílias, mas menos jovens em grupos, como é comum nos atos da esquerda. “A gente criou uma linguagem que mescla diversão, provocação e um pouco de rock and roll, o que confunde o adversário”, disse Renan Santos. Depois dos atos, é preciso cuidar da narrativa. “Em tempos de pau de selfie, o importante não é tanto a história que você faz, mas a história que você conta.”
A estratégia comunicativa visa, segundo os rapazes, superar o estigma de que a direita é “coxa”, pesada e convencional. “Eu vou a festas boas, tenho amigos gays, negros, artistas. Dá para ser legal sem votar no PT ou no PSOL”, disse Alexandre Santos. No fim do debate, a plateia logo se dispersou. Não houve chope nem pizza coletivos. O trio do MBL foi jantar com um grupo restrito em um restaurante no próprio shopping.
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-103/chegada/tea-party-a-brasileira
Nenhum comentário:
Postar um comentário