Saiu na Veja edição eletrônica:
O NOVO RACISMO
PSEUDOCIENTÍFICO
Recém lançado nos Estados Unidos, o livro 'A
Troublesome Inheritance' tenta reavivar o antigo debate sobre a existência de
raças humanas. Ao site de VEJA, pesquisadores explicam que não há argumento
científico válido para a discussão — e demonstram que os homens são variados,
mas não o suficiente para a existência de classes diferentes entre eles
Rita
Loiola
Variações genéticas entre
diferentes populações possibilitam o estudo de suas diferenças, origens e rotas
no planeta (Robert Churchill/Thinstock)
No início
do século XVIII, o biólogo sueco Carlos Lineu começou o que se tornaria sua
grande herança: a classificação da natureza. Ele separou os organismos em três
reinos, inventou conceitos como gêneros e espécies e, em 1758, na obra Sistema
Natural, dividiu os seres humanos em quatro categorias — que chamou de
raças. O uso do conceito logo se alastrou para muito além das fronteiras da
biologia, insuflando preconceitos odiosos e servindo à defesa dos mais atrozes
propósitos políticos, como a escravidão, o nazismo alemão e o apartheid
sul-africano. Foi preciso esperar pela década de 1970 para que a ciência se
encarregasse de descreditar a noção de que as diferenças entre os seres humanos
são tão profundas a ponto de constituir raças. Nos últimos 40 anos, o conceito
foi abandonado nos laboratórios. Mas ele volta a ser invocado pelo best-seller A
Troublesome Inheritance (Uma Herança Incômoda, em tradução livre), do
jornalista científico britânico Nicholas Wade.
Em suas páginas, o autor mistura os mais avançados estudos em variação genética e as antigas classes de Lineu em um esforço para reabilitar a separação da humanidade em raças. Mais que isso, especula que a seleção natural dos genes humanos seria responsável não só pela desigualdade entre os homens, mas também pelo desenvolvimento cultural econômico das sociedades. Publicado em maio, o título fez parte da lista dos livros mais vendidos do jornal americano The New York Times e gerou uma reação violenta da comunidade acadêmica de todo o planeta, mostrando que o empenho de Wade não tem fôlego para ir longe.
Em suas páginas, o autor mistura os mais avançados estudos em variação genética e as antigas classes de Lineu em um esforço para reabilitar a separação da humanidade em raças. Mais que isso, especula que a seleção natural dos genes humanos seria responsável não só pela desigualdade entre os homens, mas também pelo desenvolvimento cultural econômico das sociedades. Publicado em maio, o título fez parte da lista dos livros mais vendidos do jornal americano The New York Times e gerou uma reação violenta da comunidade acadêmica de todo o planeta, mostrando que o empenho de Wade não tem fôlego para ir longe.
"Dos
anos 1970 para cá descobrimos muitas coisas surpreendentes sobre as populações
e os recentes estudos de genética mostram que há variações entre elas. No
entanto, hoje temos uma compreensão maior sobre o significado dessa diversidade
e sabemos que aquelas categorias raciais em que acreditávamos não
existem", diz o biólogo Diogo Meyer, professor do Instituto de Biociências
da Universidade de São Paulo (USP) e um dos maiores nomes no Brasil no estudo
de genética de populações. "É infinitamente mais interessante estudar as
variações dos genes que falar sobre raças, algo que empobrece o debate e a
pesquisa."
A grande
raça humana — A
primeira menção às raças humanas é de Lineu, mas o preconceito que envolve o
tema só viria a se consolidar com o aristocrata francês Joseph-Arthur Gobineau,
no século XIX. Sua obra Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas
fundou o que hoje é conhecido como o "racismo científico", teoria que
inspirou os conflitos raciais do século XX. Essas ideias só foram destruídas
pela ciência em 1972, quando o biólogo americano Richard Lewontin, da
Universidade Harvard, fez uma pesquisa com pessoas que fariam parte das
diferentes raças e, por meio do estudo de suas proteínas — o máximo que se
conhecia de informação genética humana na época —, descobriu que os homens são
profundamente semelhantes. Desde então, a discussão sobre raça humana foi
encerrada pela comunidade científica. Para a Associação Americana de
Antropologia (AAA), nos Estados Unidos, o conceito é uma construção social, sem
validade para a ciência.
A
inexistência das raças não invalida outro debate que veio à tona desde 2003,
com a conclusão do Projeto Genoma: a imensa variabilidade genética das
populações. O sequenciamento do DNA humano forneceu aos cientistas explicações
não só sobre o que há dentro dos cromossomos de um indivíduo como também sugere
quais são os genes mais frequentes nas diversas regiões do mundo. Essa
informação genética, submetida a pressões ambientais e selecionada pela
evolução, é uma das responsáveis pelas características de europeus, americanos
ou africanos.
Foi com
essas informações que os cientistas descobriram que a tolerância à lactose ou
ao álcool resultaram de um importante movimento evolutivo em nossos genes. E
que um dos fatores que influi nas diferentes taxas de incidência de doenças
crônicas nos continentes é a seleção natural. O último estudo sobre o assunto
foi publicado na revista Nature, em julho, mostrando que a seleção de um
gene desde a pré-história tem papel central na adaptação dos habitantes do Tibete para viver a mais de 4.000 metros de
altitude.
"A
evolução é um movimento contínuo e vivemos adaptações e seleção natural
recentes", diz Rasmus Nielsen, professor de teoria evolutiva e genética na
Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos, e um dos autores
da pesquisa da Nature.
Para
Wade, a consequência lógica desse movimento adaptativo é que a constante
pressão evolutiva tornaria esses grupos cada vez mais afastados – constituindo
as raças. No entanto, a ciência mostra que esse não é o caminho que a
humanidade tomou. "Ao contrário de outras espécies, nossa evolução não se
dá isoladamente em diferentes regiões geográficas — algo necessário para a
diferenciação em raças, linhagens ou espécies", diz Nielsen.
Variações
pouco significativas — Biologicamente, para que a existência de subespécies ou raças apareça é
necessária a separação física da espécie. Assim, o material
genético, submetido a pressões evolutivas dos diferentes locais,
transforma-se e os grupos se dividem. Isso não aconteceu com os
homens. Suas viagens e deslocamentos constantes superaram as barreiras naturais
e promoveram uma troca intensa de genes, hábitos e aspectos culturais. Por
meio da reprodução, a grande transferência genética entre os
indivíduos não impediu o aparecimento de variações, mas evitou que suas
diferenças se tornassem tão profundas a ponto de criar novas categorias
biológicas.
"A tendência
é que habitantes de diferentes regiões geográficas se tornem, em pouco tempo,
geneticamente semelhantes. Nossa propensão, portanto, não é de nos
dividirmos em diferentes grupos, mas o oposto", diz Nielsen.
"Por isso, a variação genética das populações humanas não é
suficiente para validar cientificamente a existência de raças."
Uma das
razões para isso é que os humanos não são geneticamente tão variados como
outras espécies. Uma pesquisa publicada na revista Science em
1999 mostrou que animais como os chimpanzés possuem sequências genéticas quase quatro vezes mais variadas que os homens — e
esses animais são divididos em raças. Para verificar a existência
dessas categorias, os biólogos aplicam técnicas matemáticas que medem as
diferenças genéticas e separam as classes. Quando o código genético
humano é submetido às mesmas regras, não é possível dividi-lo dessa forma.
"Não
conseguimos agrupar os homens como os chimpanzés.
Nós descendemos de poucos grupos de hominídeos, o que limitou grandes
diferenças genéticas", afirma o biólogo evolucionista Ian Rickard, da
Universidade Durham, na Inglaterra.
Comportamento
genético — Um dos
antigos argumentos ressuscitados pelo livro lançado nos Estados Unidos é que a
base biológica seria determinante na produção de comportamentos distintos em
diferentes regiões do mundo. Dessa maneira, as variações genéticas, centrais
para as condutas humanas, teriam um papel importante no desenvolvimento das
sociedades e economias, tornando-as desiguais. Algumas poderiam construir
culturas sofisticadas — europeias ou asiáticas — enquanto outras estariam
destinadas a sociedades mais simples — como as indígenas ou africanas. Cada uma
dessas categorias ou raças seria determinada, biologicamente, a um ou outro
tipo de vida — o que gera um intenso debate ético na comunidade científica.
"A
relação entre variações de comportamentos nas diferentes culturas e as
diferenças entre as instituições sociais com base em genética evolutiva ou
comportamental é, para dizer o mínimo, fantasia. Não há evidência alguma dessa
ligação e ainda não conhecemos seu funcionamento", afirma Rickard.
Isso
acontece porque os pesquisadores não sabem quais fatores atuam na equação
genética das características complexas. "Sabemos que a genética tem
influência forte no comportamento. No entanto, ainda conhecemos muito
pouco sobre seu funcionamento para nos tornar capazes de afirmar algo sobre o
assunto", afirma a pesquisadora Lygia da Veiga, chefe do Laboratório
Nacional de Células-Tronco Embrionárias da Universidade de São Paulo (USP).
"A única certeza que temos é que os fatores genéticos não
são determinantes nas condutas humanas."
Características
diversas — A
conclusão mais contundente que os estudos de genética trouxeram aos
cientistas nos últimos anos é as diferenças genéticas humanas não são
organizadas em classes ou categorias, mas ocorrem em uma escala repleta de
variáveis.
"Graças
à revolução tecnológica, temos muitas informações quantitativas sobre os genes
humanos e percebemos suas variações ocorrem como se fosse um dégradé
de características", explica o biólogo Diogo Meyer. "Aplicar a isso a
etiqueta de raça restringe nossos estudo, pois faz pensar que há categorias
estanques, quando o que se verifica é um contínuo genético."
Assim, o
tema proibido dos anos 1980 e 1990 deu lugar ao estudo das variações
dessa escala, que estão sendo decifradas pelas pesquisas em genética e
evolução. "A intuição de que as populações são diferentes entre si tem
fundamento. Há variação genética entre elas, que torna possível estudar suas
diferenças, origens e rotas no planeta. E não é preciso ter medo de falar dessa
variação", afirma.
Esses
estudos são importantes, principalmente, para os testes de medicamentos ou de
análises de padrões de evolução de doenças em populações diversas. “Por meio do
local de origem é possível ter uma série de informações sobre populações e
indivíduos e isso é extremamente produtivo. No entanto, fazer ciência bem feita
significa respeitar a realidade e, nesse caso, é perceber que o ser humano é
variado, submetido a forças como hábitos ou culturas e não pode ser dividido em
classes."
Assim,
mais que procurar antigas categorizações humanas, como as propostas há três
séculos, os cientistas de hoje preferem trabalhar respeitando a variação
intrínseca e característica que forma a espécie humana. "Sim, há pequenas
diferenças entre africanos e caucasianos, mas as semelhanças genéticas são
muito maiores", afirma o biólogo Stephen Stearns, professor da
Universidade Yale, nos Estados Unidos, e um dos principais nomes da biologia
evolutiva em todo o mundo. "Há alguma verdade genética no conceito
antiquado de raça, mas é um efeito menor, sutil e está longe de ser
determinante."
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