E SE O
ERRO, A FABULAÇÃO, O ENGANO REVELAREM-SE TÃO ESSENCIAIS QUANTO A VERDADE?
Oswaldo Giacoia Junior- Folha de SP, 19 de fevereiro de 2017
RESUMO
O autor analisa o atual
fenômeno de relativização da verdade à luz de conceitos como o perspectivismo
nietzschiano. Ele sustenta que, num cenário de produção e consumo ininterruptos
de informação, a ambiguidade do conteúdo difundido parece ser pré-requisito
para despertar o interesse do público e fidelizá-lo.
TEXTO
Integram o cortejo dos espectros que rondam Donald Trump,
presidente dos Estados Unidos, certas noções vagas como "pós-verdade"
e "cultura pós-factual", as quais, a despeito de sua fluidez,
aparecem no debate público como se fossem conceitos filosóficos.
Ambas designam a poluição da mídia pornotícias falsas, ou "fake news", e
geram uma transformação nas relações entre verdade e mentira. Já não se
pergunta simplesmente se uma notícia é falsa ou verdadeira, mas em que consiste
a noção de verdade de uma informação. Ou seja, a própria ideia de verdade surge
como um problema.
Declarações ambíguas, enviesadas, enganosas ou derivadas de
enganos são na prática equiparadas a mentiras inventadas deliberadamente pelos
mais diversos motivos: ganhar dinheiro de anunciantes, alcançar resultados
eleitorais específicos, formar e influenciar correntes de opinião, induzir
metas de políticas públicas e reforçar vínculos de identificação coletiva,
formatando maneiras de pensar e sentir em determinados segmentos sociais.
Trata-se, portanto, de solapar o crédito de informações que se
pretendem objetivas, como se não houvesse um critério para diferenciar a
notícia falsa da verdadeira. O leitor, largado num meio sabidamente repleto de
mentiras, pode nivelar por baixo e duvidar de todos os conteúdos publicados, ou
pode agarrar-se àqueles que lhe pareçam mais apropriados.
Que importa se, objetivamente, era possível medir o tamanho do
público presente à cerimônia de posse de Trump? O governo americano sentiu-se à
vontade para mencionar um número maior, iniciativa que depois uma assessora do
presidente definiu como a apresentação de "fatos alternativos".
Não existe nesse tipo de atitude nada que se confunda com a
postura filosófica do perspectivismo, segundo o qual o ponto de vista de cada
um interfere no modo de conhecer e apreender a verdade (que existe). Na era da
"pós-verdade", tudo se passa como se a verdade simplesmente não
existisse e todos os pontos de vista tivessem valor idêntico -como se a suposta
"verdade" divulgada pelo governo americano não fosse pior do que a
"verdade" factual apurada pelos jornais tradicionais.
Ora, se todas as "verdades" são igualmente válidas, se
cada cidadão pode escolher o ponto de vista de seu agrado, qual o sentido de um
debate público que busque o esclarecimento? Em outras palavras, está em jogo o
emprego sistemático de técnicas de propaganda para obliterar e entorpecer a
capacidade de pensar criticamente.
O filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), falsamente
identificado como precursor desse relativismo ambientado na penumbra em que
todos os gatos são pardos, foi, em vez disso, o pensador que antecipou um
conflito eventual que pode nos ajudar a compreender as agruras do momento
problemático que atravessamos.
É conhecida sua formulação: e se o erro, a falsidade, o engano
revelarem-se, tanto quanto a verdade, essenciais como meios úteis para a
conservação da vida? Essa pergunta incomoda o pensamento filosófico desde que
Nietzsche teve a ousadia de colocá-la em toda sua extensão e profundidade.
Ora, os fenômenos que nos confrontam hoje podem ser interpretados
na chave hermenêutica que Nietzsche generosamente nos colocou nas mãos.
Vivenciamos um conflito entre verdade e condições de existência. De que
existência, porém, se trata aqui? Daquela que, como pensava Nietzsche, sempre
se produz em termos de relações de poder, de jogos de força em que encontram
apoio e expressão interesses vitais, desejos, temores, expectativas de
reconhecimento, aspirações de domínio e estratégias de resistência.
Identifiquemos, então, algumas das variáveis no debate atual sobre
a definição e as consequências das "fake news" para os rumos da
cultura e da política nas democracias contemporâneas.
VERIFICAÇÃO
Com a explosão dos novos meios de comunicação no ambiente digital,
distribuídos pela malha includente da sociedade global em arranjos de alta
capilaridade (rizomáticos, a rigor) e se reproduzindo em milhares de centros
virtuais dificilmente localizáveis e responsabilizáveis (nos sentidos ético e
jurídico), torna-se instável a possibilidade de verificação isenta de fatos,
bem como muito mais dinâmica e inventiva a produção e a circulação de
mensagens, seja qual for o seu teor.
Em sociedades lastreadas na troca de informações e na comunicação
sustentada por tecnologias de ponta, que se autorreplicam e formatam todos os
setores da vida -economia, política, educação, cultura etc.-, os interesses
estratégicos e as condições de existência estão estreitamente vinculados às
possibilidades, tecnologicamente facilitadas, de "tornar-comum" o
conteúdo veiculado, ou seja, de difundi-lo a um universo amplo de pessoas e de
reduzi-lo a sua dimensão mais simplória, num movimento que cria oportunidades
para o vulgar e o sensacionalista.
Com isso, torna-se possível inserir nessas redes tudo o que for
capaz de abastecê-las com eficiência, passando, então, a fazer parte da
"nutrição cotidiana" de cada um. Não importa tanto se o conteúdo é
"verdadeiro"; importa acompanhar "como a coisa rola". A
ambiguidade das mensagens é condição necessária para manter acesa a avidez por
"novidades", a reiteração da expectativa curiosa em espiral infinita.
Informações transformaram-se em mercadorias intercambiáveis num
arranjo cujos agentes são reduzidos ao denominador comum de consumidores e cuja
lógica operante é a da produção e da circulação mercantil.
Razão pela qual importa menos a pretensão de validade do que a
expectativa de realização de desejo que a informação venha a satisfazer. Por
isso adquire plausibilidade o pseudoargumento: afinal, o que é a verdade, já
que temos bons motivos para descrer de toda verificação factual?
A imputação de falsidade por parte de um opositor funciona como
seu contrário. Reforça convicções previamente firmadas, preconceitos arraigados
e impermeáveis a razões, mas dóceis às moções afetivas de autoidentificação.
Daí por que notícias inventadas na esteira do sensacionalismo
midiático não são desqualificadas, mas, ao contrário, reafirmadas e até
estimuladas pelos melhores esforços para desmascará-las; pois o que importa
para os atores e as organizações sociais interessados na proliferação desse
tipo de comunicação é manter acesa a chama da curiosidade que elas atiçam e
alimentar o falatório até suas derradeiras possibilidades de rendimento.
Uma explicação para isso encontra-se na lógica interna de tais
processos, infensos ao escrutínio crítico, já que o único critério que conta
são os acessos, ou indicadores quantitativos de consumo. Desenvolve-se uma
simbiose perfeita entre a comprovada demanda crescente dos clientes e o
rendimento auferido graças à divulgação de material publicitário.
Dado que os indicadores de acesso substituem os antigos critérios
de verificação, embute-se o risco de esse novo parâmetro gerar um círculo
vicioso: a quantidade de acessos quase sempre está em relação com o potencial
de atração contido na distorção da mensagem. Isso significa que o horizonte de
avaliação é o do impacto causado.
Para manter vivo o interesse pela informação vale tudo, inclusive
induzir e filtrar seletivamente as escolhas preferenciais do leitor por meio de
algoritmos que "adivinham" sites mais consentâneos com suas
tendências. As possibilidades e limites da apropriação político-ideológica dos
conteúdos, bem como aquelas de seu controle responsável, são virtualmente
indetermináveis, e isso a despeito de todas as catastróficas consequências que
esse desregramento pode causar, dentre as quais o estímulo ao cinismo
irresponsável, o desfecho eleitoral pernicioso e a destruição sistemática de
reputações.
A capacidade de pensar por si e de assumir responsabilidades por
opiniões e ações passa pela antiga e saudável desconfiança e pelo esforço de
nos distanciarmos do que se nos pretende impingir como última novidade, como
sinal dos tempos da "pós-verdade".
É possível que se oculte aí apenas um velho fetiche, uma manobra
diversionista para desviar a atenção e dispensar da reflexão, reforçando o
isolamento narcísico que parece estar vinculado à inclusão aparente e à conexão
em redes de comunicação com alcance planetário.
OSWALDO
GIACOIA JUNIOR, 62, é professor titular de história da filosofia contemporânea e
ética na Unicamp
A ascensão política de Donald Trump nos EUA, a
decisão britânica de deixar a União Europeia e a definição contrária ao acordo
de paz na Colômbia têm sido elencadas como exemplos de uma crise da democracia
global e dos sistemas de representação política.
O índice de democracia da consultoria Economist
Intelligence Unit mais recente, divulgado em janeiro, já indicava uma "era
de ansiedade", em que o sistema de governo popular sofre uma série de
reveses pelo mundo.
Para o filósofo americano Jason Brennan, os três
casos são símbolo de problemas na tomada de decisões políticas. Esses impasses
favorecem a participação das pessoas em detrimento do conhecimento que elas têm
sobre a realidade em questão –o que leva, segundo ele, a escolhas irracionais.
Este é o caso específico do "brexit", na
visão de Brennan, em que as pessoas tomaram "uma decisão estúpida"
porque não tinham informações sobre a realidade britânica. E é o modelo que
aproximou Trump da Presidência dos EUA, apesar de fazer campanha com pouco
apego a fatos reais e mentir em 71% das suas declarações, segundo o site
PolitiFact, que checa discursos políticos.
Posturas críticas da elite intelectual ao
funcionamento da democracia e à participação da população "ignorante"
são quase tão antigas quanto o próprio sistema de governo, mas voltam a ter
destaque por causa da crise de representatividade que parece disseminada pelo
mundo –além dos exemplos citados acima, há a dificuldade de formação de um
governo na Espanha, a crise política na Grécia e até mesmo o processo de
impeachment no Brasil.
Em entrevista àFolha, por telefone,
Brennan falou sobre suas críticas aos sistemas democráticos, reunidas no
recente livro "Against Democracy" (contra a democracia, Princeton
University Press, US$ 23,25), em que sugere a implementação de um sistema
político diferente: a epistocracia. Ele defende que apenas uma elite com
conhecimento aprofundado sobre temas de relevância nacional possa tomar
decisões.
Criticado por sua visão de mundo
"elitista", ele diz que a democracia ainda é o melhor sistema de
governo, mas que isso não significa que não precise evoluir.
Folha - O senhor é um forte crítico das falhas da democracia, e em
2016 o mundo viu a ascensão de Donald Trump nos EUA e decisões controversas em
plebiscitos como o "brexit" e o do acordo de paz na Colômbia. Há
alguma relação entre esses três casos?
Jason Brennan -Sim,
aparenta haver uma conexão entre esses casos. Em diferentes países há uma
divisão que parece ir além da tradicional entre direita e esquerda.
É mais uma questão de eleitores rurais discordando do que está
sendo proposto por eleitores urbanos e vice-versa. São desconexões econômicas
que geram percepções diferentes a respeito da realidade vivida e faz com que
eles votem de forma fundamentalmente diferente.
O motivo pelo qual decisões democráticas são fundamentalmente uma
questão de justiça é porque são impostas a toda a população. O monopólio das
tomadas de decisões é a própria natureza da política.
Em seu livro, sua posição vai além disso, indicando que, na
democracia, as decisões são tomadas de forma irracional.
É inevitável que, na política, haja o monopólio das tomadas de decisão, mas
isso vem com algumas responsabilidades. Quando falamos sobre decisões que são
impostas involuntariamente e que envolvem alto risco, para que as decisões
sejam justas e legítimas, elas devem ser tomadas de forma competente e com boa
fé.
Isso significa que é preciso que a pessoa tomando as decisões
precisa ter conhecimento dos fatos relevantes, entender a importância desses
fatos e processá-los de forma racional.
Como a democracia pode ser mais racional?
Uma forma de ilustrar isso é pensar em um julgamento de um assassinato. O júri
deve ao réu e à população que representa a seriedade na tomada de decisão. Ele
precisa ter conhecimento sobre o caso, pensar sobre os fatos e evidências de forma
racional, e tomar uma decisão com o objetivo de produzir justiça, e não por um
capricho ou interesse pessoal.
Todo mundo concorda com isso em relação a um julgamento, e acho
que deveríamos levar em consideração esse tipo de comportamento em relação não
apenas ao júri, mas sobre os juízes, os legisladores, os líderes militares e
até o eleitorado.
Como podemos colocar isso na perspectiva do "brexit" e
da ascensão de Trump?
Há problemas na forma como os eleitores tomam decisões e no que eles acham que
acontece no país. No caso do "brexit", os eleitores que votaram pela
saída da União Europeia tinham informações equivocadas sobre a realidade
britânica.
Eles superestimavam a proporção de imigrantes e minimizavam a
importância de investimentos europeus no país, por exemplo. O lado que ganhou
não sabia do que estava tratando ao tomar a decisão. Não conhecia os fatos e
tomou uma decisão estúpida.
Como se pode evitar isso?
Ter um conhecimento rudimentar de políticas toma uma enorme quantidade de tempo
e é incompatível com a divisão de trabalho na nossa sociedade. Não podemos
esperar que as pessoas comuns tenham conhecimento suficiente para votar de
forma inteligente sobre todos os temas.
A democracia representativa deveria consertar isso ao colocar no
poder pessoas que se informam sobre o assunto em relação ao qual vai ser tomada
uma decisão.
A democracia representativa não faz exatamente isso?
A democracia tem um certo grau de capacidade de compensar a ignorância dos
eleitores, graças à representação, à burocracia independente e à existência da
oposição. O sistema se sai melhor do que se poderia imaginar ao pensar que ele
reflete as preferências do eleitorado.
Ainda assim, para ganhar eleições, candidatos sempre levam adiante
ideias e políticas que correspondem ao que as pessoas querem. E o que as
pessoas querem reflete o que elas sabem. Se elas não sabem muito, vão querer as
coisas erradas.
O governo brasileiro está tentando passar medidas de austeridade e
está sendo criticado. O governo não deveria ouvir a população?
O simples fato de uma política ser impopular não é necessariamente um ponto
contra ela, pois nem todas as pessoas sabem como ela funciona.
Duvido que o brasileiro comum tenha condições de ter uma opinião
bem informada sobre isso, como também não teria a população do Canadá ou da
Alemanha. Saber se isso é uma boa ideia ou não é algo complicado, que depende
de um conhecimento avançado de economia.
Uma questão óbvia: se vamos tomar uma decisão sobre o encanamento
de uma casa, precisamos de conhecimento sobre o assunto. A maioria das pessoas
não tem conhecimento sobre como o encanamento funciona, então não é preciso ter
a opinião de todas as pessoas a respeito do encanamento, e a decisão precisa
ser tomada por quem entende do assunto.
Seu posicionamento em relação à democracia é criticado como
excludente e elitista.
Não acredito que as pessoas tenham um direito inerente ao voto, ou que o
direito ao voto dê as pessoas uma posição de igualdade na sociedade. A
democracia ainda é o melhor sistema, sem dúvida. Mas pode melhorar.
Em substituição, o senhor sugere a adoção da
"epistocracia". Como isso funcionaria?
Como um sistema de tomada de decisões em que as pessoas que teriam direito a voto
tivessem conhecimento real sobre as questões a serem decididas.
Não seria algo perigoso?
A epistocracia teria como sistema de freios a própria desconfiança das pessoas
em relação a ela. Claro que ele não funcionaria perfeitamente em qualquer
lugar, mas teria potencial em lugares onde democracias já funcionam. Seria um
bom modelo na Dinamarca, por exemplo, mas não na Venezuela.
EPISTOCRACIA DEFENDE REPÚBLICA DOS SÁBIOS
Epistocracia (ou epistemocracia, como também aparece citado em
trabalhos acadêmicos no Brasil), é um conceito de sistema político baseado na
ideia de episteme. O termo foi usado por Platão na filosofia grega, no século 4oa.C., para se referir ao "conhecimento verdadeiro", em
oposição à opinião infundada, sem reflexão.
Por esse sistema, o poder político não deveria ser distribuído
igualmente a todos os cidadãos, em contraposição à democracia, mas sim estar
nas mãos das pessoas sábias.
Surgida como ideia de um governo de reis filósofos em Platão, a
epistocracia foi discutida como um possível governo de sábios por Aristóteles e
chegou a ser considerada como modelo durante a República Romana –sem nunca ter
sido implementada.
O conceito passou ainda por formulação moderna com John Stuart
Mill (1806-1873), para quem as pessoas educadas deveriam ter votos extras numa
democracia. Jason Brennan defende uma epistocracia que mantivesse as principais
instituições democráticas, como partidos e eleições gerais.
RAIO-X: JASON BRENNAN
NASCIMENTO1979
OCUPAÇÃOProfessor de estratégia, ética,
economia e políticas públicas da Universidade Georgetown
FORMAÇÃODoutor em filosofia pela
Universidade do Arizona
LIVROS"Against Democracy" (Contra a Democracia, Princeton University
Press), "The Ethics of Voting" (A Ética do Voto, Princeton University
Press), "Why Not Capitalism?" (Por que não Capitalismo?, Routledge Press) e
"Markets without Limits" (Mercados sem Limites, Routledge Press)
Reportagem publicada na Folha de SP em 7 de novembro de 2016
Fomos
honrados pela citação denosso artigo(publicado
no site da "Ilustríssima") porLuiz Fernando de Paula e Elias Jabbour, que
responderam a um artigo polêmico deMarcos Lisboa e Samuel Pessôaa respeito da diferença entre direita
e esquerda em economia. Concordamos em geral com a resposta, mas pretendemos
levantar novos elementos para reflexão.
O argumento
central de Lisboa e Pessôa é que, nos EUA, os debates entre direita e esquerda
são resolvidos com o uso de métodos quantitativos de verificação de hipóteses e
que, no Brasil, isso não se faz. Nesse sentido, o fenômeno da heterodoxia
"sem uso de dados" seria tipicamente brasileiro, como reiterado em
novo artigo de Lisboa e Pessôa em 04/09.
Os equívocos de
Lisboa e Pessôa são diversos e alguns deles foram apontados por de Paula e Jabbour.
Primeiro, não é verdade que praticamente não existam heterodoxias fora do
Brasil, mas apenas divisões entre esquerda e direita no seio da "economia
tradicional". Esse desconhecimento reflete o fato de que as faculdades
neoclássicas não estudam as heterodoxias, embora os heterodoxos estudem e
sabiam bem porque rejeitam a ortodoxia neoclássica.
Por outro lado,
como de Paula e Jabbour alertaram bem, há uso abundante de técnicas
econométricas entre economistas heterodoxos, particularmente (agregaríamos) o uso
de séries temporais. É verdade que a heterodoxia recorre a métodos
quantitativos com muito mais ceticismo do que a ortodoxia, e quase sempre em
simbiose com análises qualitativas (institucionais e históricas). Contudo,
enquanto as meta-regressões de John Stanley documentaram fartamente o viés de
publicação dos resultados empíricos desejados pelos neoclássicos, autores como
Anthony Thirlwall, John McCombie e Jesus Felipe, por exemplo, apresentam
estudos econométricos que refutam cabalmente as hipóteses neoclássicas sobre
determinantes do crescimento econômico e da distribuição de renda, sendo
convenientemente ignorados pela ortodoxia.
O que deve ser
esclarecido é o que de fato diferencia a ortodoxia neoclássica e as
heterodoxias. Depois de fazermos isso, mostraremos que as proposições teóricas
de Lisboa e Pessôa são refutadas empiricamente mesmo no seio da ortodoxia, mas
resolvidas pelas heterodoxias. Finalmente, abordaremos o desastre da proposta
ortodoxa de austeridade no Brasil.
ORIGENS
A ortodoxia e as
heterodoxias podem ser entendidas como derivações da economia política fundada
por Adam Smith. Por um lado, Smith alegava que a livre concorrência levaria à
eficiência e harmonia no uso dos recursos, justificando a liberação das
restrições à busca de interesses pelos indivíduos e o livre comércio entre
países. Por outro lado, Smith posiciona os indivíduos em classes sociais
(aristocratas da terra, burgueses e trabalhadores) que têm conflitos agudos,
documentando coordenação dos empresários para rebaixar salários e aprovar leis
que proíbem a reação coletiva dos trabalhadores.
Grosso modo, a
ortodoxia neoclássica parte do indivíduo como unidade de análise e chega ao
equilíbrio geral entre a soma de indivíduos que formam uma economia harmônica.
As heterodoxias partem da assimetria entre classes sociais ou países e
enfatizam a dinâmica contraditória e a instabilidade geradas pela busca de
enriquecimento dos empresários.
Por isso, enquanto
a ortodoxia legitima um Estado mínimo ou com intervenções pontuais, as heterodoxias
justificam políticas mais estruturantes e maior regulação dos mercados. Na
primeira metade do século 19, Alexander Hamilton nos EUA e Friedrich List no
mundo alemão já questionavam a harmonia entre países desiguais, inspirando
políticas protecionistas e de desenvolvimento.
Em Smith, a
distinção entre indivíduo e classe social não muda sua preferência pelos
burgueses. Tanto ele quanto David Ricardo justificaram a concentração do
patrimônio e da renda pelos capitalistas. Sua abstinência dos prazeres do
consumo supostamente geraria a poupança necessária para o investimento que, em
seguida, geraria a riqueza que gotejaria para os trabalhadores perdulários,
para as rendas dos aristocratas da terra e para a arrecadação tributária. É
isso que Karl Marx e, depois, Keynes questionariam, fundando heterodoxias.
A ênfase no
individualismo metodológico só se completou, porém, com a revolução
marginalista proposta na década de 1870 por Jevons, Menger e especialmente
Walras, patrono do modelo de equilíbrio geral que é a base da ortodoxia
contemporânea. O destaque da economia política clássica nas classes sociais é
substituído, então, pelo equilíbrio harmônico e justo entre indivíduos livres e
iguais, que não se preocupam mais com a aprovação simpática do outro como dizia
Smith, mas apenas com sua vantagem utilitária, à la Bentham.
Assim, a ortodoxia
neoclássica parte do axioma (não-empírico) de indivíduos racionais e
maximizadores de utilidade de acordo com preferências e dotações de recursos
que precedem sua interação social. Nem suas relações nem suas preferências
seriam estruturadas, assimetricamente, de acordo com seu posicionamento em
classes sociais (e países) com poder diferente sobre recursos econômicos e
políticos e sobre a formação de convenções sociais.
Partindo desses
supostos axiomáticos, a dedução lógica assegura a conclusão esperada desde Adam
Smith: as interações livres entre indivíduos (e países) levam a um equilíbrio
estável e maximizador, satisfatório para todos. Como as interações individuais
não são estruturadas por relações desiguais entre classes sociais e países que
mudam historicamente, os fenômenos não precisam ser entendidos com base em uma
análise qualitativa de assimetrias estruturais e suas transformações complexas,
como é típico das heterodoxias.
À moda
positivista, a causalidade é mera concomitância regular de eventos em uma
economia de mercado que é essencialmente a mesma em qualquer tempo e espaço.
Assim, os fenômenos são explicados pela mudança exógena de preferências,
técnicas e intervenções políticas, gerando incentivos comunicados pelos preços
que, por sua vez, induzem a reação de indivíduos maximizadores até que um novo
equilíbrio seja alcançado.
A moeda é vista
apenas como um véu que facilita trocas reais, enquanto o sistema financeiro
apenas intermedia recursos reais entre poupadores e investidores. Assim, a
inflação atrapalha a poupança e as interações mercantis que sempre tendem ao
pleno emprego dos recursos reais, resultando de alguma intervenção exógena,
como gastança do governo ou egoísmo dos sindicatos. Os equilíbrios aquém do
ótimo não seriam resultados endógenos das interações, mas meras reações da
economia de mercado a intervenções que querem levá-la além do ótimo.
O DESAFIO DE
KEYNES
Em 1936, Keynes
desafiou a ortodoxia ao afirmar que a economia monetária de produção tinha
mecanismos endógenos que não asseguravam o equilíbrio com pleno emprego. O
pleno emprego era uma situação possível e especial, mas uma teoria geral
deveria explicar outros estados de equilíbrio sem pleno emprego. Keynes alegou
que a mera disponibilidade de recursos não assegurava que fossem usados ao
máximo, pois os capitalistas investiriam caso houvesse expectativas favoráveis
de demanda efetiva para ocupar a capacidade ociosa.
Se imaginarem que
a capacidade ociosa não será ocupada e estiverem endividados, os empresários
podem destinar recursos para o pagamento de dívidas ou para a constituição de
reservas financeiras. O que é racional para o indivíduo, contudo, é ruim para a
classe: no agregado, a queda do gasto significa queda de receitas, o que pode
tornar ainda mais difícil pagar dívidas e induzir a novas contrações dos gastos
e das receitas.
Ao invés da
causação cumulativa, a ortodoxia confia no feedback negativo da flexibilidade
de preços para restaurar o equilíbrio maximizador: a queda de preços e salários
aumentaria a demanda automaticamente. Keynes acusa aí uma nova falácia de
composição: preços menores reduziriam a capacidade de pagamento de dívidas e
encareceriam sua rolagem, enquanto salários menores reduzem o gasto dos
capitalistas, mas também seu nível de produção e suas receitas, inibindo ainda
mais o investimento. Michal Kalecki, o principal macroeconomista marxista
contemporâneo de Keynes, diria que os trabalhadores tendem a gastar o que ganham,
mas os capitalistas ganham o que gastam.
De nada adianta
que o corte do gasto privado leve a uma redução da arrecadação de impostos. Se
o governo cortar despesas, as receitas do setor privado voltariam a cair e a
capacidade ociosa a subir. E nada garante que as exportações líquidas aumentem
para compensar a contração da demanda interna.
Isso é agravado
pelo funcionamento do sistema financeiro. Como mostrou Hyman Minsky, o sistema
não se limita a intermediar recursos reais entre poupadores e investidores: ele
cria poder de compra, endogenamente, através da expansão do crédito,
alimentando um otimismo crescente que rebaixa exigências para concessão de
empréstimos e inflaciona o preço de ativos financeiros.
Quando o ciclo
muda de direção, as convenções sociais que animam a valoração de ativos
tornam-se pessimistas, levando à queda de preços à medida que são liquidados em
uma busca pela liquidez de saldos monetários e títulos da dívida pública. O
aumento da poupança financeira desejada microeconomicamente não leva a um
aumento da poupança macroeconômica, pois os investimentos caem e, com eles, a
renda agregada, os lucros e a capacidade de pagar dívidas.
Assim como a
elevação de investimentos, consumo dos trabalhadores, gasto público pode se
realimentar e levar a economia a um boom de otimismo e tomada de riscos
crescentes, a reversão dos gastos pode alimentar um círculo vicioso de
pessimismo e queda de demanda até uma crise financeira, se a deflação de ativos
financeiros levar à desconfiança quanto à solvência dos bancos que financiaram
a expansão e a especulação.
O recado de Keynes
é que o sistema não tem a capacidade de se auto-regular. Sem que o governo
diminua sua poupança e incorra em déficits quando os empresários resolvem
poupar coletivamente, a busca de poupança será frustrada pela queda da renda
agregada. Sem que bancos centrais reduzam juros, ofereçam créditos que os
bancos não conseguem contratar no interbancário e até comprem ativos quando os
bancos os liquidam, a desaceleração cíclica e o esgotamento da bolha financeira
acabará em falências bancárias e em uma montanha de dívidas impagáveis.
Melhor que
remediar, contudo, seria prevenir a instabilidade com a construção de
instituições apropriadas. Primeiro, o planejamento e coordenação de um volume
amplo de investimentos públicos reduziria a instabilidade do investimento
privado ao assegurar um nível adequado de demanda efetiva. Segundo, o banco
central deveria assegurar a liquidez dos bancos, mas em troca proibir ou
restringir fortemente o financiamento de posições nos mercados de ativos,
separando o financiamento do investimento produtivo e os ciclos especulativos.
Terceiro, controles de capitais proibiriam a especulação nos mercados de
câmbio, enquanto instituições multilaterais financiariam desequilíbrios de
balanço de pagamento sem impor uma recessão, que apenas transferiria o
desequilíbrio de um país a outro. Finalmente, políticas de renda e sociais
deveriam inibir a desigualdade, pois a maior propensão a consumir dos
trabalhadores (em relação aos ricos) ampliaria o multiplicador do gasto
autônomo e contribuiria para um nível adequado de demanda para os
investimentos.
A RESPOSTA
NEOCLÁSSICA
A reação ortodoxa
foi enquadrar a macroeconomia de Keynes no arcabouço neoclássico, fazendo da
situação de ociosidade de recursos novamente um caso particular da
microeconomia do equilíbrio geral. Os macroeconomistas neoclássicos não
abandonaram o individualismo metodológico nem incorporaram a concepção de
causação cumulativa e endógena dos ciclos de crédito e investimento, o papel da
incerteza e das convenções sociais que induzem os agentes a comportamentos
individualmente racionais, mas coletivamente irracionais em ondas de otimismo
que se desdobram em pessimismo, em razão do excesso de investimento em
capacidade ociosa, inflação de ativos e endividamento.
Os neoclássicos
não chegaram ao resultado keynesiano apontando motivos endógenos à interação
entre capitalistas, pois mantiveram a suposição de indivíduos com acesso
simétrico aos mercados de crédito e seguros e às melhores informações e
tecnologias, usando o mesmo modelo teórico e operando em concorrência perfeita.
O sistema só não seria levado ao equilíbrio maximizador por causa de falhas de
mercado que, no fundo, eram um bloqueio exógeno a um sistema que não teria
qualquer instabilidade intrínseca. Não haveria imperfeição ou equilíbrio
sub-ótimo na realidade sem a perfeição subjacente ao modelo de indivíduos
racionais e maximizadores de utilidade.
O irrealismo dos
supostos e a experiência recorrente de crises levou a questionamentos
crescentes dentro e fora da igreja neoclássica: como confiar nas previsões se
os supostos eram cada vez mais deslocados de uma realidade de grandes empresas
e bancos com poder oligopólico crescente? A falsa solução foi proposta por
Milton Friedman em 1953, criando a metodologia neoclássica moderna e sua ênfase
na formalização matemática e métodos econométricos.
Friedman alegou
que os economistas neoclássicos não deveriam se importar com o irrealismo das
hipóteses sobre a concorrência perfeita e sobre o comportamento dos indivíduos.
Não era mais necessário fazer pesquisa empírica e histórica sobre as condições
institucionais do capitalismo realmente existente. Bastava partir de supostos escolhidos
arbitrariamente (axiomas não-empíricos) e supor que o mundo funciona "como
se" eles fossem válidos. Ao invés de explicar, tratava-se simplesmente de
prever a correlação entre variáveis exógenas e endógenas ao modelo, supondo,
com toda a fé, que os elos causais entre elas resultem da operação (não
observada) de indivíduos livres sem interações assimétricas.
A imensa maioria
dos ortodoxos sequer sabe que a proposta metodológica de Friedman, próxima do
instrumentalismo, é rejeitada quase universalmente entre filósofos e
epistemólogos, porque faz da economia a única ciência em que a maioria dos
praticantes não se preocupa em explicar fenômenos, mas apenas prever
correlações com base em descrições e supostos completamente irrealistas sobre o
funcionamento do objeto.
A despeito de sua
artimanha metodológica, todas as hipóteses de Friedman foram refutadas quando
se mostrou que confundiam causalidade e correlação ou que a correlação nem
existia: que a oferta de moeda era exógena; que a variação de preços dependia
da oferta exógena de moeda; que a velocidade de circulação da moeda era
praticamente constante; que os agentes econômicos não se preocupavam com
variáveis nominais; que a especulação estabilizante levaria o preço de ativos
ao seu equilíbrio fundamental.
Não obstante seu
fracasso teórico, a liberação do irrealismo dos supostos permitiu que vários
economistas neoclássicos formulassem hipóteses ainda mais ousadas para elogiar
a perfeição dos mercados e a imperfeição de políticas que busquem limitar e orientar
comportamentos econômicos. A economia política neoclássica, por exemplo,
admitiu de modo protocolar a existência de falhas de mercado (como monopólios
naturais e a poluição), mas as considerou raras e menores do que as falhas dos
governos que tentassem revertê-las.
Era a senha para o
ataque neoliberal contra as instituições de regulação do capitalismo
construídas no pós-guerra e desmontadas a partir da década de 1980. A revolução
das expectativas racionais, liderada por Lucas, Barro e Sargent, levou ao
extremo a confiança na mecânica dos mercados livres. Para os autores
novo-clássicos, como os agentes racionais sabem que o aumento do gasto público
levará à elevação futura de impostos, anulam completamente a política fiscal
com cortes compensatórios dos gastos privados, para economizar recursos para o
pagamento futuro de impostos. A melhor política contracíclica seria, portanto,
cortar o gasto público, o que levaria os agentes a aumentar o gasto privado
desde logo!
Como os mercados
financeiros seriam eficientes e bolhas de ativos seriam impossíveis, as
restrições às operações financeiras deveriam ser eliminadas ou fortemente
reduzidas para permitir a melhor alocação possível dos recursos. Finalmente,
políticas de rendas e sociais deveriam ser "flexibilizadas" para
permitir a redução de salários e o aumento da poupança, a realocação de
trabalhadores entre ramos e o aumento dos incentivos para o trabalho duro.
Hoje em dia, o
campo neoclássico é dividido em dois grupos. A visão novo-keynesiana, mais à
esquerda, reconhece falhas de mercado (rigidez de preços e salários ou
assimetrias de informação) e confia na capacidade do Estado em regulá-las,
enquanto os novo-clássicos desconfiam à direita. Os novo-keynesianos defendem
políticas contra a desigualdade, mas, contra Keynes, compartilham com os
novo-clássicos a hipótese de que geram perda de eficiência e crescimento.
Também admitem a política fiscal "de emergência" durante crises, mas
até 2008 se uniram em uma "nova síntese" que alegava que novas crises
seriam improváveis graças à submissão dos banqueiros centrais às regras do
regime de metas de inflação. Nenhuma das escolas neoclássicas previu a crise
financeira mundial, ao contrário de inúmeros autores heterodoxos que mantiveram
a concepção dinâmica das instabilidades do capitalismo herdada de Marx, Keynes
e Minsky.
AUTOCRÍTICA SEM
TEORIA
É claro que o
fracasso das políticas e reformas neoliberais não poderia passar desapercebido
pelo campo neoclássico. Curioso é que a autocrítica não passe perto dos
neoclássicos brasileiros. Lisboa e Pessôa, por exemplo, sustentam o dogma que
"em geral, as economias operam nas proximidades do pleno emprego" e
não o consideram refutado pelas evidências desde 2008.
Continuam
afirmando a contradição - central ao programa neoliberal - entre busca de
igualdade e ganho de eficiência e crescimento, como se o aumento da
desigualdade não tivesse convivido com redução do crescimento nas três décadas
de neoliberalismo e como se até o FMI já não rejeitasse tal causalidade.
Também defendem a
pauta mínima dos neoinstitucionalistas anglo-saxões quanto aos direitos de
propriedade e gastos em educação como fonte do poderio de seus países, e não a
percebem refutada 1) pelos casos de desenvolvimento com planejamento
industrial, empresas estatais e bancos públicos nas periferias do capitalismo,
2) pelo fato de que regras legais, direitos de propriedade intelectual e o
gasto educacional foram ampliados nas últimas três décadas, o que não impediu o
aumento e aprofundamento das crises financeiras depois do ataque neoliberal,
liderado por reformadores anglo-saxões, às instituições keynesianas de
regulação dos mercados.
Com efeito, os
países que mais cresceram foram os que combinaram a flexibilidade da empresa
privada com controles amplos sobre o sistema financeiro, assim como empresas
estatais, bancos públicos e políticas industriais que orientavam investimentos
públicos e privados, internos e externos. Em suma, o neoliberalismo fracassou
na promessa de alocar melhor os recursos (sem crises) e de ampliar a desigualdade
para gerar mais crescimento econômico.
É curioso que
Lisboa e Pessôa aleguem que as controvérsias teóricas devam ser resolvidas com
evidências empíricas, mas ao mesmo tempo desconheçam as evidências que os
próprios neoclássicos juntaram contra as proposições teóricas que exportaram,
desde a década de 1980, para o Brasil e o resto do mundo através do Consenso de
Washington.
Há poucas semanas
o Fundo Monetário Internacional surpreendeu ao publicar uma autocrítica aguda
do neoliberalismo. A autocrítica envolveu três aspectos do programa que o Fundo
impôs aos países periféricos desde a década de 1980: 1) liberalização
financeira; 2) a relação entre desigualdade e crescimento econômico; 3)
austeridade fiscal.
É digno de nota
que tamanha autocrítica se fez sem qualquer reflexão teórica profunda (apesar
das dúvidas de Olivier Blanchard), como se não houvesse sistemas universitários
e teóricos que formassem economistas que previam o fracasso das reformas
neoliberais desde o início. Mais do que isso: como se o próprio patriarca do
FMI, John Maynard Keynes, não tivesse criado um sistema teórico que explica
porque fracassam as políticas e instituições que a nova ortodoxia neoliberal do
FMI difundiu pelo mundo quarenta anos depois de sua criação, apoiada pelas
"melhores" faculdades de economia e pelo próprio governo dos EUA,
assim como por "think-tanks" financiados por grandes empresários e
corporações.
Diante da
descoberta muito tardia do fracasso das previsões de seu sistema teórico de
base neoclássica, os neoclássicos não sabem o que fazer, a não ser agregar
hipóteses secundárias, ad hoc, por cima de modelos hipotéticos que partem de um
único "agente representativo", mas preveem o equilíbrio maximizador
entre indivíduos racionais. A mágica é retorcer os modelos com "choques
imaginários" e "falhas de mercado" de modo que, exogenamente,
produzam resultados econométricos aparentemente adequados aos dados recortados.
A explanação teórica e a reconstituição histórica, no entanto, se perdem em meio
a formalizações e racionalizações irrelevantes para entender e explicar as
economias capitalistas realmente existentes.
Quanto à
liberalização financeira, foi acompanhada pela explosão de crises, à medida que
os países confiaram na capacidade de auto-regulação dos mercados e desmontaram
a regulamentação keynesiana do sistema financeiro doméstico e os controles ao
movimento internacional de capitais. O FMI agora voltou a admitir controles de
capitais como no mundo anterior à década de 1980 e como na Índia e na China
ainda hoje, embora o principal sócio da instituição multilateral, os EUA, vete
uma defesa explícita que sequer é discutida no meio da ortodoxia brasileira.
No que tange às
relações entre desigualdade e crescimento econômico, tecnocratas neoliberais
legitimaram o ataque de empresários, desde a década de 1970, contra os impostos
que financiavam o Estado de bem-estar social e contra os arranjos sindicais e
políticos que asseguravam o aumento de salários reais. Recuperando argumentos
pré-keynesianos, economistas neoclássicos apresentaram evidências episódicas
para assegurar que a redução de alíquotas de impostos sobre os ricos e a
"flexibilização" (queda) de salários reais e do gasto social
aumentariam o crescimento econômico, o nível de emprego e a própria arrecadação
tributária. Hoje o FMI admite que o aumento da desigualdade, parcialmente
resultante do desmonte das políticas sociais e salariais que buscavam maior
igualdade social, trouxe menos e não mais crescimento econômico.
Programas de
austeridade fiscal, por sua vez, não se mostraram capazes de controlar o
crescimento da dívida pública em relação ao PIB, tendendo ao contrário a
aumentá-la ao provocar desacelerações ou mesmo recessões que deprimem a
arrecadação tributária. Hoje, o FMI considera melhor reduzir o peso da dívida
pública no PIB "organicamente", isto é, depois que o crescimento
econômico seja retomado com políticas anticíclicas e, então, provoque aumento
da arrecadação tributária a um ritmo superior ao do gasto público, enquanto a
redução da taxa de juros diminui o peso da dívida pública no PIB. A ideia de
que a contração fiscal é expansionista só não morreu no meio da ortodoxia
brasileira.
A DITADURA DA
AUSTERIDADE
Só a fé na
hipótese de contração fiscal expansionista explica a desconsideração dos
neoclássicos brasileiros em relação aos dados de queda da rentabilidade das
empresas (apesar das isenções fiscais), deflação do preço das commodities e o
ciclo longo de endividamento de empresas e famílias cuja reversão se iniciava
em 2014. Nestas condições, tomar a parte pelo todo, o micro pelo macro, a
economia doméstica ou a empresa pelo sistema complexo, implica em recomendações
desastrosas de política econômica: para um empresário individual, o corte do
gasto público e do salário real pode representar promessa de custos menores no
futuro, sem que entenda a interação complexa por meio da qual a queda
resultante da demanda agregada vai prejudicar, antes da redução de custos, as
receitas e o balanço patrimonial de sua empresa.
Mais grave é que o
mesmo equívoco se repita entre economistas. Sua esperança é que o investimento
privado se recupere à medida que corte do gasto público acompanhe a queda da
arrecadação, sem prever que, ao se defrontar com o corte da demanda gerado pela
austeridade fiscal e salarial, o empresário vai destinar receitas para pagar
suas dívidas e comprar títulos públicos, sobretudo se o Banco Central prometer
um ciclo longo de elevação de juros.
Em um sistema
complexo, a falácia de composição implica que quando todos, inclusive o
governo, tentam poupar, o corte de demanda agregada frustrará o desejo de
poupar e dificultará ainda mais o pagamento das dívidas. Como não perceber o
desastre caso o governo e o Banco Central também sinalizem para uma grande
depreciação cambial que, antes de estimular exportações, encarecerá importações
e passivos externos?
Nos meses finais
de 2014, já escrevíamos que a economia brasileira estava à beira da recessão.
Também apontávamos a queda do preço das commodities, a operação Lava-Jato e a
possibilidade de racionamento de água e energia como motivos porque um ajuste
fiscal seria contraproducente ao jogar a economia na recessão que acentuaria a
queda da arrecadação tributária e aumentaria o peso da dívida pública no PIB.
Ao mesmo tempo, economistas neoclássicos faziam festa com o anúncio do programa
de Joaquim Levy, expressa por exemplo na previsão do boletim FOCUS de que a
economia se recuperaria em relação a 2014, crescendo 0,8% em 2015. A breve
melhoria da confiança empresarial no final de 2014 parecia dar materialidade à
crença de que, pelo menos no Brasil, a fada da confiança faria milagres.
Nunca afirmamos
que foi apenas o corte severo da despesa pública, acelerado no primeiro
semestre de 2015, que provocou a contração do PIB de 3,8%. Neste caso, o
"conjunto da obra" que reforçou a desaceleração cíclica já em curso e
jogou a economia na recessão incluiu, além das políticas monetária e cambial
incensadas pela ortodoxia, o aumento de receitas por meio da elevação de preços
públicos e impostos federais e estaduais, e as declarações de Levy que
continuaria cortando o que fosse necessário para correr atrás da enorme queda
de arrecadação e alcançar a meta fiscal irrealista, acentuando a espiral
descendente que, certamente, contribuiu para aumentar a impopularidade da
presidenta e as incertezas trazidas pela crise política.
Afirmamos sim que
o programa fiscal seria contraproducente para sua finalidade declarada,
melhorar o resultado fiscal ou, pior ainda, a relação dívida pública/PIB.
Estudos econométricos apontam que o multiplicador fiscal, o montante que a
renda nacional cresce (ou cai) para cada Real gasto (ou eliminado) pelo
governo, se amplia em uma recessão, podendo chegar a um valor maior do que 3,5,
sobretudo se cortar o investimento público e prejudicar a confiança no futuro
de empresas e famílias. A sensibilidade da arrecadação tributária a uma
recessão também é maior, de modo que a tentativa do governo de aumentar sua
poupança tende a se frustrar à medida que o multiplicador fiscal se eleva e a
arrecadação despenca. Não se estimou o esforço tributário de Estados e
municípios, mas o da União chegou a pelo menos 0,44% do PIB, com ganho de carga
tributária de apenas 0,12% em 2015 (e com IRPF de 2014!).
Ou pior, uma
política que contribui para derrubar o PIB não tem como reduzir a relação
dívida/PIB, tanto mais se a política de juros altos colabora para aumentar o
numerador e reduzir o denominador. Como dizia Keynes, se há algum momento
propício para a austeridade, esse é o boom e não a recessão. O ônus da prova de
que o contrário vale para o Brasil, mas não no resto do mundo, continua com os
defensores de primeira hora da austeridade expansionista.
Eles precisam
provar, também, que a concentração da renda aumenta a capacidade de recuperação
da economia brasileira, que acabou de passar por um longo ciclo de crescimento
sob o impulso da desconcentração da renda e da incorporação de trabalhadores
pobres aos mercados de consumo. Joaquim Levy afirmou em junho de 2015 que havia
gente que não queria entrar mais no mercado de trabalho, mas voltaria com a
recessão a procurar emprego, o que seria bom pois "não existe crescimento
sem aumento da oferta de trabalho."
Em debate que
tivemos em outubro de 2015 com Lisboa e Pessôa, este afirmou que "quanto
mais os salários reais caírem, mais rápido e indolor o ajuste vai ser. Em maio,
junho, fiquei super feliz porque as expectativas estavam mostrando uma queda de
salário real de 5%". Ora, Keynes já mostrara há décadas que, assim como o
corte do gasto público, a queda de salários e do nível de emprego também reduz
os lucros agregados à medida que as vendas caem. Mesmo prevendo salários e
custos menores, os capitalistas não investem sem demanda. E, paradoxalmente,
não lucram se não gastam.
O resultado é que
a queda de receitas torna as empresas superendividadas, com risco crescente de
inadimplência que, por sua vez, retrai ainda mais o crédito bancário. Ou seja,
quando todos poupam para pagar suas dívidas ao mesmo tempo, tanto a dívida
pública quanto a privada aumentam em relação ao PIB em queda.
Curiosamente,
muitos dos economistas que diziam não haver espaço fiscal para uma política
anticíclica no final de 2014 aceitaram a primeira revisão da meta de déficit
fiscal para R$ 170,5 bilhões em 2016 pelo governo interino, nos fazendo supor
que não eram tecnicamente equivocadas, mas politicamente motivadas, as censuras
àqueles que, como nós, criticavam a resistência do ministro Levy a revisar a
meta fiscal irrealista em 2015.
A solução do novo
governo Temer é, contudo, dobrar a aposta na austeridade, tornando-a permanente
com a PEC 241, que impede a ampliação real do gasto público. Se aprovada,
levará a cortes radicais nas leis que preveem ampliação da cobertura de bens e
serviços públicos, inclusive educação e saúde, para poupar recursos para o
pagamento da dívida pública.
Macroeconomicamente,
é um mau negócio. O gasto social tem um grande multiplicador fiscal,
conservadoramente estimado pelo IPEA acima de 1,5, mas o multiplicador do
pagamento de serviços da dívida pública é estimado pouco abaixo de 0,8, dado o
fato que seus portadores são, em geral, liberados de preocupações imediatas de
consumo.
Embora mesmo o FMI
admita que a melhor maneira de controlar o peso da dívida pública no PIB é
estimular o PIB e reduzir a taxa de juros, as atas do Copom sob comando de Ilan
Goldfajn parecem condicionar a queda da taxa de juros à "continuidade dos
esforços para aprovação e implementação (das) reformas fiscais", leia-se a
PEC 241.
O problema disso,
primeiro, é que o déficit público não resulta de gastança, mas de queda de
arrecadação, logo a inflação não resulta de excesso de demanda pública a
controlar com juros altos. Segundo, os juros elevados e inexplicáveis são o
principal determinante da ampliação da dívida pública, gerando custos que a
austeridade do gasto social e do investimento público é incapaz de controlar,
tanto mais porque os cortes limitam o crescimento do PIB.
Politicamente, é
uma impostura: pesquisas de opinião mostram que a imensa maioria da população
(até 98%) aprova a universalidade e a gratuidade da saúde e da educação
pública. No mundo acadêmico, além de injusta, a austeridade é vista como
contraproducente tecnicamente. O maior risco atual à democracia brasileira é
que instituamos uma ditadura de tecnocratas que legitimam, com retórica
cientificista, mudanças no pacto social inscrito na Constituição Federal com
base em argumentos desatualizados empírica e teoricamente.
LUIZ GONZAGA BELLUZZO, 73, é professor titular do Instituto de
Economia da Unicamp.
PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS, 45, é professor associado do Instituto
de Economia da Unicamp.
Abaixo, um trecho de Uma Herança Incômoda, de Nicholas Wade,
que será lançado no final do mês pelo selo Três Estrelas. A obra se baseia em
estudos sobre as relações entre genética, raças e instituições. Embora contra a
eugenia, o autor foi severamente criticado, até mesmo por autores em que o
livro se apoia.
A visão que os economistas geralmente sustentam do desenvolvimento
econômico é que as pessoas têm pouco ou nada a ver com ele. Como todos os
humanos são unidades idênticas que respondem da mesma maneira a incentivos, ao
menos na teoria econômica, se um país é pobre e outro rico, a diferença não
teria nenhuma ligação com as pessoas, devendo residir nas instituições ou no
acesso a recursos. Basta uma oferta suficiente de capital e a imposição de instituições
favoráveis aos negócios, e um robusto crescimento econômico certamente se
seguirá. Fortes evidências desse efeito parecem ter sido apresentadas pelo
Plano Marshall, que ajudou a reviver as economias europeias após a Segunda
Guerra Mundial.
Com base nessa teoria, o Ocidente gastou cerca de 2,3 trilhões de
dólares em assistência ao longo dos últimos cinquenta anos, sem conseguir
melhorar os padrões de vida da África. Será que alguma coisa está errada na
teoria? E se as unidades humanas das economias mundiais não forem tão
completamente fungíveis quanto supõe a teoria econômica, com a consequência de
que variações em sua natureza, como sua preferência temporal, sua ética de
trabalho e sua propensão à violência, têm algum peso nas decisões econômicas que
elas tomam?
Para explicar a discrepância entre teoria e prática, alguns estudiosos
interessados em desenvolvimento começaram a sugerir que talvez, no fim das
contas, as pessoas façam diferença. A sugestão deles é que a cultura desempenha
um papel importante no comportamento econômico das pessoas.
No começo dos anos 1960, Gana e a Coreia do Sul tinham economias e
níveis de PIB per capita similares. Cerca de trinta anos depois, a Coreia do
Sul tornou-se a 14ª maior economia do mundo, exportando manufaturas sofisticadas.
Gana estagnou, e o PIB per capita é quinze vezes menor do que o da Coreia do
Sul. "Pareceu-me que a cultura tinha de ser uma parte importante da
explicação", observou o cientista político Samuel Huntington ao considerar
essa divergência de destinos econômicos.
"Os sul-coreanos valorizavam a poupança, o investimento, o trabalho
duro, o estudo, a organização e a disciplina. Os ganenses tinham valores
diferentes."
Até o economista Jeffrey Sachs, proponente incansável do aumento da
assistência, admitiu a possibilidade de que a cultura possa desempenhar algum
pequeno papel nas diferenças de desenvolvimento econômico. Ainda que "as
grandes divisões entre países ricos e países pobres tenham a ver com geografia
e com política", escreve, "há, de fato, sugestões de fenômenos
mediados culturalmente. Dois são evidentíssimos: o desempenho abaixo do
esperado dos países islâmicos do norte da África e do Oriente Médio e o grande
desempenho de países tropicais na Ásia oriental que possuem uma importante
comunidade da diáspora chinesa".
Porém, se a cultura consegue explicar o desempenho econômico em alguns
poucos grupos, ela poderia ter um papel importante em todas as economias. Os
estudiosos temem estudar mais o assunto porque não estão realmente usando a
cultura apenas em seu sentido aceito de comportamento aprendido. Antes,
trata-se de um termo abrangente que inclui referências possíveis a um conceito
que eles não ousam discutir, a possibilidade de que o comportamento humano
tenha uma base genética que varia de uma raça para outra.
O sociólogo Nathan Glazer, por exemplo, quase admite que a cultura e a
raça são variáveis explicativas válidas, que, no entanto, não podem ser usadas.
Escreve ele:
"A cultura é uma das categorias explicativas menos favorecidas no
pensamento atual. A menos favorecida, claro, é a raça. Preferimos não
mencioná-la nem usá-la hoje em dia, embora pareça haver uma ligação entre raça
e cultura, talvez apenas acidental. As grandes raças, no todo, são marcadas por
culturas diferentes, e essa conexão entre cultura e raça é um motivo do nosso
desconforto com explicações culturais."
Diversos comportamentos sociais que os economistas identificaram como
obstáculos ao progresso poderiam perfeitamente ter base genética. Um deles é o
raio de confiança, que pode estender-se a estranhos nas economias modernas, mas
que, nas pré-modernas, fica limitado à família ou à tribo. Escreve Daniel
Etounga-Manguelle, economista camaronês:
"Vistas por dentro, as sociedades africanas são como um time de
futebol no qual, como resultado de rivalidades pessoais e da ausência de
espírito de equipe, um jogador não passa a bola para outro por medo de que este
faça um gol. Como podemos ter esperança de vitória? Nas nossas repúblicas, as
pessoas de fora do "cimento" étnico têm tão pouca identificação umas
com as outras que a simples existência do Estado é um milagre."
A disposição de poupar e de retardar a gratificação é um comportamento
social que Clark vê aumentar gradualmente na população inglesa nos 600 anos que
antecedem a Revolução Industrial. Por outro lado, a propensão para poupar
parece consideravelmente menor em sociedades tribais. Isso pode ocorrer, em
grande medida, porque essas sociedades são mais pobres; cada qual vai poupando
mais à medida que enriquece. Porém, a aversão a poupar em sociedades tribais
está associada a uma forte propensão ao consumo imediato. Citando outra vez
Etounga-Manguelle:
"Por causa da relação que os africanos têm com o tempo, poupar para
o futuro têm prioridade menor do que o consumo imediato. A menos que haja
alguma tentação de acumular riqueza, aqueles que recebem um salário regular
precisam financiar os estudos de irmãos, de primos, de sobrinhos e de
sobrinhas, alojar os recém-chegados e financiar a série de cerimônias que
preenchem a vida social."
Há indícios razoáveis de que a confiança tem base genética, embora ainda
esteja por ser verificado se ela varia significativamente entre grupos étnicos
e raças. Os aspectos da cultura que alguns economistas começaram a considerar
relevantes para a performance econômica poderiam perfeitamente ter base
genética, mesmo que isso ainda precise ser provado ou mesmo investigado com
seriedade. O comportamento social, qualquer que seja seu nível de fundamentação
cultural ou genética, pode ser modulado pela formação e pelos incentivos; por
isso, um entendimento melhor de seu papel na performance econômica pode ter
consequências práticas. Aqueles que ignoram a cultura também ignoram "uma
parte importante da explicação de por que algumas sociedades ou grupos étnico-religiosos
têm melhor desempenho do que outros no que diz respeito a governo democrático,
justiça social e prosperidade", escreve o especialista em desenvolvimento
Lawrence Harrison.
O elo entre raça e cultura fica evidente no famoso experimento natural
iniciado pelas migrações humanas. Membros de várias raças migraram para
diversos ambientes, mas mantiveram seus comportamentos peculiares em muitos
países ao longo de muitas gerações. O economista Thomas Sowell documentou
muitos desses episódios em sua trilogia sobre raça e cultura.
Consideremos o caso dos imigrantes japoneses nos Estados Unidos. Eles
chegaram como trabalhadores agrícolas no Havaí ao final do século 19 para
trabalhar na lavoura de cana e depois mudaram-se para o continente. A primeira
geração era de agricultores e de trabalhadores domésticos e conquistou fama por
seu esforço. A segunda geração, com a vantagem da formação universitária
americana, buscou aprender profissões. Em 1959, a renda familiar dos japoneses
americanos era igual à dos europeus americanos, e em 1990 era 45% maior.
No Peru, os trabalhadores japoneses conquistaram fama por seu esforço,
por sua confiabilidade e por sua honestidade, tornando-se bem-sucedidos no
setor agropecuário e na indústria. No Brasil, os japoneses foram considerados
eficientes, industriosos e ordeiros. À medida que prosperavam, entraram no
setor bancário e na indústria e chegaram a possuir terras, no Brasil, em
quantidade equivalente a 75% do território do Japão. Nessas três culturas
diferentes, os japoneses tiveram sucesso graças a hábitos diligentes de
trabalho, com a primeira geração composta de agricultores prodigiosos e a
segunda passando ao mundo profissional.
A diáspora chinesa compunha-se de imigrantes igualmente produtivos, em
especial no Sudeste Asiático, onde a maioria trabalhou infatigavelmente e
ergueu empresas. A maioria dos imigrantes chineses começou como colonos em
fazendas, com uma capacidade enorme para trabalhar duro. Na Malásia, os
chineses que realizavam trabalho não qualificado junto com os malaios nas
plantações de borracha produziam duas vezes mais. Já em 1794, um relatório
britânico sobre o assentamento malaio de Penang dizia que os chineses eram
"a parte mais valiosa dos nossos habitantes".
As empresas chinesas eram tipicamente familiares, tanto no capital
quanto no gerenciamento, mesmo quando se tornavam corporações de tamanho
considerável. Elas se aferravam a seus próprios valores e à sua ética de
trabalho entre populações que muitas vezes tinham uma visão mais relaxada de
como se deveria passar o tempo.
No Caribe, escreve Sowell, os chineses "permaneceram à parte do
sistema de valores da sociedade das Índias Ocidentais –não foram afetados pelos
padrões creoles de consumo ostensivo, de distribuição dadivosa, de perdão de
dívidas e outros traços que operam contra o sucesso empresarial".
Pequenas populações chinesas na Tailândia, no Vietnã, no Laos e no
Camboja vieram a ter um peso desproporcional nas economias desses países. Elas
dominaram a próspera economia de Cingapura e foram tão produtivas na Indonésia
que seu sucesso provocou inveja e repetidos massacres. Em 1994, os 36 milhões
de chineses que trabalhavam no exterior produziam tanta riqueza quanto o bilhão
de chineses na China.
A imigração significativa de chineses para os Estados Unidos começou em
1850, com a corrida do ouro na Califórnia. Com frequência, os chineses só
tinham permissão para garimpar aquelas áreas que os demais consideravam não
valer a pena, mas mesmo assim eles persistiram e floresceram onde outros não
conseguiram. Os trabalhadores chineses construíram boa parte da estrada de
ferro Central Pacific e chegaram a compor 80% de todos os trabalhadores
agrícolas da Califórnia.
Seu sucesso provocou uma série de leis discriminatórias defendidas por
aqueles que não conseguiam competir com eles. Excluídos de uma indústria após a
outra, em 1920 mais da metade de todos os chineses nos Estados Unidos
trabalhavam em lavanderias e em restaurantes. Assim que as leis adversas foram
revogadas, uma geração mais jovem de sino-americanos começou a frequentar a
faculdade e a obter trabalhos profissionais. Em 1959, a renda familiar chinesa
estava no mesmo nível da média americana, e em 1990 a sua renda familiar média
era 60% mais alta do que a dos americanos não asiáticos.
NICHOLAS WADE, 74, jornalista britânico, trabalhou no "The New York Times".