Socialismo à americana? Por que os EUA não têm partido trabalhista
RODRIGO
RUSSO
Folha de
São Paulo 20/03/2016
RESUMO Sociólogo revê a ideia vigente de que os EUA não precisariam do
socialismo por serem a terra da oportunidade. Para Robin Archer, que define o
vigor do pré-candidato democrata Bernie Sanders como fenomenal, o liberalismo
caro aos americanos poderia beneficiar os trabalhadores a confrontar crescentes
desigualdades.
"Um fenômeno notável". Assim o sociólogo político australiano
Robin Archer, professor da London School of Economics, doutor pela Universidade
de Oxford e especialista na cultura política americana, define a candidatura –e
a competitividade– do senador democrata Bernie Sanders nas primárias
presidenciais de seu partido.
Para Archer, o vigor da campanha de Sanders, que tem incomodado a
favorita Hillary Clinton, com vitórias em seis Estados, prova que "o
efeito político completo da crise financeira global só começa a se fazer sentir
agora". "Tenha em mente que o realinhamento político nos EUA após a
Grande Depressão só ocorreu cerca de sete anos depois do crash dos
mercados", afirma o professor em entrevista à Folha, via
e-mail.
O sociólogo prossegue: "A média das pesquisas de opinião mostra que
ele derrotaria todo e qualquer candidato republicano, se fosse nomeado pelos
democratas".
Essa chance hoje é remota, mas, ainda assim, Archer crê que o bom desempenho
de Sanders "lança dúvidas" sobre a percepção de que as ideias
dominantes nos EUA seriam um "obstáculo intransponível" às políticas
progressistas.
O professor conhece como poucos as dificuldades históricas de políticas
socialistas naquele país e a literatura predominante no século 20 sobre o
ideário americano e sua suposta incompatibilidade com valores trabalhistas. Em
2007, o coordenador do curso de sociologia política da LSE lançou a obra"Why
Is There No Labor Party in the United States?" [Princeton University
Press, 368 págs., R$ 201,15; R$ 103,80 em e-book na Amazon.com.br].
No livro, cujo título inquire por que não há partido trabalhista nos
EUA, Archer desafiou a resposta tradicionalmente sustentada por grandes nomes
da sociologia política norte-americana, como Seymour Martin Lipset (1922-2006),
professor que passou por Columbia e por Harvard.
Lipset argumentava que os EUA são uma nação com um conjunto particular
de dogmas, um credo, ao qual atribuiu o nome de "americanismo":
liberdade, igualitarismo, individualismo, populismo e
"laissez-faire". Dizia ainda que os americanos continuavam sendo mais
meritocráticos e antiestatistas que outros povos.
O pensamento de Lipset sobre o tema é frequentemente resumido em quatro
palavras: "sem feudalismo, sem socialismo".
A frase ganhou notoriedade em todo o continente: em passagem curiosa
para o leitor brasileiro, Lipset conta o que ouviu em encontro com Fernando
Henrique Cardoso. Bem antes de ser presidente, o brasileiro explicou ao
sociólogo americano que havia criado um partido social-democrata no Brasil
porque a consciência de classes socialista não tem apelo nas Américas, sendo
menos saliente que na Europa pós-feudal.
Pois Archer discorda, e oferece uma interpretação bastante distinta
sobre o papel do liberalismo no americanismo, particularmente no final do
século 19 –quando sindicatos nos EUA discutiam seriamente a criação de um
partido trabalhista/socialista.
"Tenho muitos pontos de discordância com Lipset e outras
interpretações convencionais. Mas a diferença central é que eles tipicamente
veem o liberalismo como uma característica essencial ao 'credo americano',
argumentando que atuou como limitação para o desenvolvimento de políticas
socialistas ou trabalhistas. Tento mostrar que a força do liberalismo americano
oferecia oportunidades ideológicas para proponentes de políticas de esquerda.
Eles podiam argumentar que estavam simplesmente tentando cumprir integralmente
a promessa desses valores americanos", explica Archer.
IDENTIDADE
O sociólogo destaca em sua análise a desigualdade vigente nos EUA nos
anos 1880 e 1890. Nesse período, "muitos dos mais ricos e mais
proeminentes comerciantes, industriais e banqueiros estabeleceram uma
identidade de classe distinta e começaram a conscientemente emular um estilo de
vida aristocrático".
Há detalhes saborosos na pesquisa empreendida por Archer, como a
descrição de um baile promovido pela mulher do advogado Bradley Martin,
Cornelia, em 1897.
O interior do chiquérrimo hotel Waldorf Astoria, em Nova York, foi
inteiramente decorado para ser uma réplica do palácio de Versalhes. Martin se
vestiu como o rei francês Luís 15 para a ocasião. Cornelia, por sua vez, usou
um colar que havia pertencido à própria Maria Antonieta para recepcionar seus
convidados. A festa cumpriu sua função a contento e entrou para a história como
uma das mais extravagantes do século 19.
Como o democrata Sanders está hoje atento à desigualdade social nos EUA,
resumida pelo movimento Ocupe Wall Street na frase "Nós somos o 99%",
os líderes sindicais daquela época perceberam o descompasso entre a promessa e
a realidade nacionais de então.
Entre eles, Archer destaca especialmente Eugene Debs (1855-1926), que
concorreu como socialista cinco vezes à Presidência. Em um de seus discursos,
Debs alertava: "Apesar dos melhores esforços dos 'pais fundadores', o país
tem testemunhado o crescimento contínuo de aristocratas sem título".
Criava-se, assim, um paralelo indesejado com a Europa: a aristocracia da
riqueza consolidava-se nos EUA, da mesma forma como a aristocracia de sangue
fizera no Velho Continente.
Debs, em vez de negar o "credo americano" liberal, exortava
sua recuperação. Em um discurso para mais de 100 mil pessoas após ser libertado
de um período na prisão por greve, em 1895, fez um de seus apelos mais diretos:
"O tema desta noite é a liberdade pessoal; ou dar a ela sua total
profundidade, grandeza e altura, a liberdade americana". Para preservar os
valores que fundaram a democracia americana do sequestro aristocrático, Debs
considerava "uma necessidade imperativa que os trabalhadores organizados
tomassem uma posição unida nas urnas".
Não tomaram. O máximo de votos que Debs obteve nas candidaturas foi 6%
do total, na de 1912. E isso não porque o socialismo nunca tenha sido forte nos
EUA, diz Archer, mas porque era extremamente radical naquele país.
Os diversos grupos socialistas não conseguiam se unir por divergências
de interpretação sobre o que realmente seria a versão correta do socialismo;
tampouco aceitavam a união com trabalhadores agrários, que muitos grupos na
Europa promoveram como primeiro passo para ganhar força.
As consequências da falta de um grupo partidário que defendesse os
interesses dos trabalhadores, como o Partido Trabalhista no Reino Unido ou o
Partido Social-Democrata na Alemanha, são sentidas até hoje.
"Sociólogos políticos sabem, por estudos comparativos, que fortes
partidos com bases trabalhistas tiveram um papel importante no desenvolvimento
de Estados de bem-estar social. Então é muito provável que a fraqueza do
'welfare state' nos EUA seja parcialmente resultado do fracasso em estabelecer
um partido trabalhista eleitoralmente viável", analisa Archer.
Outras duas consequências descritas pelo professor são a debilidade dos
sindicatos americanos e, principalmente, o grau de desigualdade na distribuição
de renda do país –um fenômeno que Sanders, o socialista na disputa deste ano,
não se cansa de apontar.
Quanto à possibilidade de um candidato democrata implantar reformas de
cunho socialista, Archer avalia que "na maior parte de suas histórias,
tanto democratas quanto republicanos estiveram mais alinhados a interesses étnico-religiosos
do que a interesses de classe". "Houve períodos, no entanto, como
depois do New Deal [conjunto de políticas do presidente Franklin Delano
Roosevelt para resgatar a economia nos anos 1930], em que os democratas
adotaram características muito parecidas às de social-democratas."
Talvez pelo distanciamento garantido pelo fato de não ser americano,
Archer chega a uma conclusão inconveniente aos ufanistas: "Paradoxalmente,
em uma terra que frequentemente se define como democrática, secular e liberal,
é a importância da repressão, da religião e do socialismo o que ajuda a
explicar o fracasso de estabelecer um partido trabalhista".
RODRIGO RUSSO, 29, é repórter da Folha