A
IDEALIZAÇÃO DO ESTADO AUTORITÁRIO E INTERVENTOR NO BRASIL
No dia 10 de janeiro
de 2016, o sociólogo Jessé Souza publicou na Folha de São Paulo um artigo
criticando o discurso antiestatista dos liberais brasileiros. No dia 31 daquele
mês, o cientista político Marcos André Melo rebateu Jessé Souza em um artigo
também publicado pela Folha. Em outro artigo no mesmo jornal, no dia 21 de
fevereiro, Jessé Souza defendeu o seu primeiro texto e refutou as ideias de
Marcos André Melo. Segue abaixo o texto de Marcos André Melo. Os argumentos de Jessé
Souza não são convincentes e estão nos links no final da postagem.
Instigante debate tem sido gerado pela assertiva de Jessé Souza, na
"Ilustríssima" (10/1), de que o Estado tem sido, no
Brasil, "demonizado como corrupto e ineficiente e o mercado visto como o
reino de todas as virtudes". Na realidade, as raízes do Brasil político e
institucional passam longe de Sérgio Buarque de Holanda: elas se assentam em
solo diverso, na santificação do Estado.
As instituições políticas brasileiras foram moldadas por essa
visão iliberal. Ela foi o princípio organizador da ordem social de acesso
limitado, para usar o conceito de Douglass C. North e coautores, que
caracteriza o Brasil do século 20.
O Brasil monárquico, centralizador e escravagista do século 19 é
por excelência o Brasil "Saquarema". Esse Brasil é produto da
imaginação política do Visconde do Uruguai e dos líderes do Regresso
Conservador: eles que forjaram as instituições fundamentais do país. Como
lembra José Murilo de Carvalho, Uruguai é o pai do projeto conservador
vitorioso que aposta na intervenção autoritária do Estado para redimir a nação
e que marcou o Brasil do século 20.
Esse projeto se assenta no pressuposto de que a sociedade civil e
o mercado são viciosos –faccionais, particularistas, locais– e de que o Estado
é o ator fundamental nesse reformismo "pelo alto". O Estado demiurgo
garantiria a integridade da ordem territorial e social.
Os discípulos diretos dessa visão no século 20 são Alberto Torres
e Oliveira Vianna. Ao referir-se ao Brasil "invertebrado" criado pela
República, Torres postulava um Estado forte que domasse os interesses privados
regionais e patrocinasse o interesse coletivo. Em "Organização Nacional"
(1910), Torres apresentou um projeto de reforma constitucional nacionalista e
centralizador –e forneceu parte considerável do léxico iliberal que dominou o
discurso político no século 20. Nessa chave, as instituições políticas liberais
eram consideradas pouco propícias para prosperar no solo brasileiro. Vem de
Torres e de pequeno círculo de publicistas com quem mantinha afinidades
eletivas a fantasia do espelho de Próspero: a noção de que a democracia era
coisa alienígena porque anglo-saxônica.
O nosso "Ocidente" seria outro: Ibérico. Iberismo e
democracia, autogoverno, ou governo limitado, seriam incompatíveis. Vem também
desse círculo de publicistas o horror aos partidos políticos e à competição
política. O "locus" da política eram os Estados –todos os partidos
eram estaduais–, daí o horror à federação. Quando finalmente escreveram uma constituição –para um Estado Novo
em folha–, celebraram-na com uma tenebrosa queima de bandeiras estaduais.
Torres também forneceu a chave para a fórmula da disjunção
"país legal versus país real". Não adiantava insistir, como seu
adversário Rui Barbosa, em fazer cumprir a letra da lei, mas reconhecer o
"idealismo da constituição", e superá-lo. Em livro com esse título,
Oliveira Vianna sustentou que o remédio para essa disjunção era um Estado forte
que asseguraria seus interesses contra os interesses mesquinhos, porque
privados, dos clãs familiares. Para isso seria necessário passar por cima da
Constituição artificial, porque liberal, ou elaborar uma carta constitucional
em que o império da lei fosse uma ficção.
CORPORATIVISMO
Barbosa Lima Sobrinho, em sua biografia de Torres, mostra a
influência decisiva dessa agenda na criação das instituições da Era Vargas
–cujos principais atores políticos reuniam-se na Sociedade dos Amigos de
Alberto Torres, fundada em 1932. Um dos seus membros, Oliveira Vianna, foi
artífice de instituições com as quais convivemos até hoje, as estruturas
corporativistas que regulam o mercado de trabalho no Brasil: a Justiça do
Trabalho, o imposto sindical, a unicidade sindical, o IAA (Instituto do Açúcar
e do Álcool), o IBC (Instituto Brasileiro do Café) e outros órgãos do
intervencionismo econômico, como o Código de Águas e de Minas –a lista é longa.
Vianna flertou abertamente com o racismo e o fascismo, mas a
maioria dos arquitetos do Brasil contemporâneo não aderiu abertamente a
projetos totalitários. A historiografia brasileira criou uma expressão própria
para identificar o conteúdo substantivo do programa desses publicistas:
"liberais autoritários", por buscarem fortalecer direitos individuais
a partir de instrumentos autoritários. Na balança, na realidade, esses direitos
pesavam muito menos do que a razão de Estado.
É fundamental enfatizar que Uruguai, Torres e Oliveira Vianna não
eram literatos. Não moldaram apenas a visão de mundo dos brasileiros, tal como
Sérgio Buarque de Holanda. Uruguai, Torres e Oliveira foram todos membros de
cortes superiores e presidentes de província e Estados –além de ministros.
Foram homens de Estado, construtores de instituições. Influenciaram gerações de
militares golpistas e a esquerda brasileira.
A rejeição ao liberalismo naquele contexto não foi um fenômeno
brasileiro –só que no Brasil deitou raízes que permanecem até hoje. As
democracias maduras fortaleceram o Poder Executivo e aprofundaram a democracia,
extirpando a dimensão iliberal; no Brasil só fizeram a primeira tarefa, não a
segunda. Muitas instituições (do mercado de trabalho etc.) continuam intactas
até hoje e apresentam patologias desconhecidas no resto do mundo (como a existência
de 38 mil sindicatos inorgânicos).
O denominador comum do programa conservador, à esquerda e à
direita, era o caráter subordinado que questões relativas à regra da lei, a
responsabilização e controle democrático do Estado ocupavam na agenda de mudança.
As instituições de controle e os direitos civis e políticos mereceram apenas
notas de rodapé.
A emancipação individual via educação não entrou na agenda. A democracia era valor não universal: o ditador foi aclamado pelo queremismo como grande líder. Afinal, matava, mas redistribuía. Não importava se as lideranças de esquerda tivessem apodrecido no calabouço do Estado Novo. Um novo "xibolete" fornecia a defesa contra a denúncia do abuso de poder e da corrupção: a desqualificação como udenismo.
A perda da eficácia simbólica dessa arma retórica no Brasil na
atual conjuntura é sinal de mudança na cultura política.
Fortalecer o Poder Executivo na nova era industrial era
imperativo, mas, ao mesmo tempo, seria necessário fortalecer os controles
democráticos, como insistia Afonso Arinos. Essa agenda só foi enfrentada na
Constituição de 1988, quando houve delegação significativa de poder ao
Ministério Público, ao Judiciário, aos tribunais de contas. As reformas dos
anos 1990 também eliminaram parte do legado varguista.
A República Velha viveu a maior parte do tempo sob estado de sítio
e poucas vozes se insurgiam contra o militarismo, o abuso de poder, a falta de
competição política, a corrupção. O único a se levantar contra o estado de
coisas vigente foi Rui Barbosa. Para ele, o presidente brasileiro havia se
convertido no "poder dos poderes, o grande eleitor, o grande nomeador, o
grande contratador, o poder da bolsa, o poder dos negócios, e o poder da força.
Quanto mais poder tiver menos lhe devemos cogitar na ditadura [...] por todos
reconhecida mas tolerada, sustentada, colaborada por todos".
Rui e poucos outros buscaram seis vezes aprovar a Lei de
Responsabilidade, sem sucesso: "Ainda não houve presidente nesta
democracia republicana que respondesse por nenhum dos seus atos. Ainda nenhum
foi achado a cometer um só desses delitos, que tão às escâncaras cometem. A
jurisprudência do Congresso Nacional está, pois, mostrando que a Lei de
Responsabilidade, nos crimes do chefe do Poder Executivo, não se adotou, senão
para não se aplicar absolutamente nunca".
E concluía: " O presidencialismo brasileiro não é senão a
ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade
consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo". A lei
pedida por Rui só foi aprovada 40 anos depois, e debatida seriamente apenas na
atual conjuntura de crise do país.
GRANDE ELEITOR
O monopólio do poder pelos incumbentes e o abuso do cargo estão
patentes na falta de competição política: presidentes eleitos com 90% (Rodrigues
Alves) ou 99,7% (Washington Luís) dos votos.
Na denúncia de Rui, em 1914, estão apontadas as principais mazelas
do Brasil, que surpreendem por sua atualidade: o presidente orwellianamente
denominado por Rui de "O Grande Eleitor" exercia e continua a exercer
papel decisivo na sobrevivência política dos deputados e senadores na barganha
por emendas ao Orçamento e distribuição de cargos na base aliada.
Na República Velha, as eleições eram uma disputa para selecionar
quem desfrutaria "o privilégio de ser o aliado do poder central"
(Nunes Leal) –padrão que foi decerto muito mitigado com a introdução do
multipartidarismo. Como Rui afirmou, os governos eram "pais e senhores das
maiorias legislativas". Hoje essas maiorias continuam sendo construídas à
sombra do Executivo, mas não ancoradas em arranjos programáticos –e sim em
fundos públicos.
O presidente era e continua sendo em graus distintos "O
Grande Nomeador", detendo o poder de nomear e demitir milhares de
servidores. O presidente também é "O Grande Contratador". Usa e abusa
do orçamento público em relações incestuosas com o setor privado. Modernamente
manipula o crédito de bancos públicos sob seu controle direto e maneja
politicamente os investimentos de fundos de pensão. O presidente encarna, e continua
a fazê-lo, o poder da Bolsa, o poder dos negócios. Na ordem social de acesso
limitado não há distinção entre empresa e Estado: essas esferas se amalgamam
intimamente. A falta de instituições que representem compromissos críveis eleva
os custos de transação e cria uma estrutura de incentivos danosa ao
desenvolvimento endógeno.
As instituições são a chave para o desenvolvimento, para o chamado
novo institucionalismo econômico de North e da nova economia política do
desenvolvimento de Daron Acemoglu e coautores. A natureza e a qualidade das
instituições explicam em grande medida o sucesso e fracasso das nações.
As "raízes do Brasil"–a chave para a compreensão do
dilema brasileiro– são as instituições políticas e econômicas extrativas que
foram implantadas ou a ordem social de acesso limitado que caracterizou a
sociedade brasileira, para utilizar conceitos dessa literatura. Historicamente
o traço distintivo foi a exclusão política e social: do escravo, do analfabeto
e das mulheres.
A extensão do sufrágio para as mulheres e a criação da Justiça
Eleitoral em 1932 (reduzindo as fraudes) aumentou a inclusão. A introdução da
representação proporcional permitiu pela primeira vez na história que
incumbentes fossem derrotados, revigorando a participação política e o pluralismo.
Mas a exclusão do analfabeto perdurou até a Emenda Constitucional 25 de 1985.
Só com a recente redemocratização a participação política se universalizou.
Os três pré-requisitos ("doorstep conditions") –império
da lei, controle da violência e instituições impessoais– para a transição à
sociedade de acesso aberto, segundo North, só agora parecem ter adquirido
alguma materialidade.
Podemos dizer gramscianamente que, enquanto "a velha ordem
morre e a nova não nasce, ainda surge uma grande variedade de sintomas
mórbidos": sua manifestação é o desfile de descalabros a que os
brasileiros têm assistido com perplexidade.
O Brasil de grande parte do século 20 é uma ordem social de acesso
limitado. Em contraste com o que North denomina estados naturais frágeis e
básicos, a violência aberta, produto da competição interelites, foi em grande
parte contida. O império da lei é limitado e emerge em virtude do
reconhecimento pelas elites de que permite ganhos recíprocos: surge do conluio
rentista. O império da lei para Acemoglu resulta da contenda redistributiva;
para North ele é produto de um arranjo intraelite, de seu autointeresse (esta é
a principal controvérsia entre eles).
Essa interpretação é mais persuasiva: o império da lei só tem tido
alguma efetividade na contenda entre as elites políticas e econômicas. O
regramento das disputas entre elites e não elites foi marcado pela impunidade.
A teoria prevê que o império da lei expanda o seu escopo do círculo das elites
para a sociedade como um todo. A identidade dos atores tem importado cada vez
menos, como se pode observar nas decisões da instituições judiciais
brasileiras.
Quanto à violência política, ela marcou o século 20, pelo menos
até a redemocratização. O início da República foi um episódio militar, e eles
foram atores fundamentais em 1922, 1926, 1930, 1937, 1945, 1954, 1964-85. Pela
primeira vez na história, a violência parece domada.
Nas sociedades de acesso aberto, a "destruição criadora"
leva permanentemente à criação e, pela competição, dissipação de rendas geradas
pela inovação. Nas sociedades de acesso limitado, as rendas tendem a ser mais
duradouras, embora possa ocorrer volatilidade e circulação nos setores das
elites. As rendas são politicamente distribuídas, desencorajando a inovação e
engendrando ciclos de "stop and go". Não há componente endógeno no
desenvolvimento. As rendas se manifestam das mais variadas formas: crédito
subsidiado, direcionado, acesso a contratos governamentais, regras de conteúdo,
desonerações. E, para o Estado, a captura do imposto inflacionário.
O abuso de poder e o risco permanente de expropriação de contratos
têm sido o traço distintivo no Brasil, e só na quadra atual observa-se pela
primeira vez a efetiva punição das elites. Mas, se o chefe do Executivo é
iliberal, a mudança sofre retrocessos.
MAJESTADE
Assim, as raízes do Brasil econômico são políticas. A essa mesma
conclusão chegou, em 1932, Ernest Hambloch, cônsul britânico no Rio de Janeiro.
Para ele o problema do atraso econômico do país resultava de suas instituições
políticas e, particularmente, do abuso de poder presidencial. Em seu livro
sugestivamente intitulado "Sua Majestade o Presidente do Brasil"
(1936), sua crítica centrava-se no poder despótico exercido pelo Executivo e a
ausência de "rule of law", o império da lei:
"Quando as coisas continuamente não estão bem em um país com
os recursos formidáveis que o Brasil possui, deve haver uma constante que
explique o fenômeno. Altas tarifas de importação, impostos de exportação,
políticas de valorização com endividamento excessivo, falta de continuidade nas
políticas de administração pública, distúrbios sociais e revoluções –todos
esses fatores podem ser apontados para explicar as atribulações do comércio e
das finanças públicas. Mas esse fatores não são as causas fundamentais e eles
próprios não explicam nada!"
E conclui: "As raízes dos problemas brasileiros devem ser
buscadas nas deficiências do regime político".
A forte tradição iliberal é a grande vencedora no processo
histórico de construção do Estado no país. Sustentar o contrário é perder de
vista o essencial: as instituições políticas brasileiras foram forjadas a
partir de uma profunda rejeição de uma visão liberal "latu senso". As
raízes do Brasil político e econômico não estão fincadas na demonização do Estado:
pelo contrário, estão profundamente imbricadas na sua santificação. A transição
começou, embora a grande variedade de sintomas mórbidos cause perplexidade.
MARCUS ANDRÉ MELO é
professor titular de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco e
foi professor visitante nas universidades Yale e MIT.
LINKS PARA OS TEXTOS DE JESSÉ SOUZA:
TEXTO DE 10/01: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/01/1727369-a-quem-serve-a-classe-media-indignada.shtml
TEXTO DE 21/02: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/02/1740875-o-partido-da-sociedade-para-poucos-jesse-souza-rebate-marcus-melo.shtml